Romance

Mar NegroDau Bastos. Ponteio, 276 págs., R$ 49.

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No mundo sobrecarregado de realidade em que vivemos, regido pelo tempo real e pelos choques da ação instantânea, nunca tivemos tanta necessidade de ficção. Ela se torna tão importante para nossa sobrevivência quanto a própria realidade. Até os personagens da literatura nos pedem mais fantasia. "Necessitada em igual medida da realidade e da ficção, iniciei um tráfego intenso entre as duas dimensões, às quais comecei a recorrer em função das precisões do momento", medita Anderline, a protagonista de Mar Negro, novo romance de Dau Bastos (Editora Ponteio). Mesmo na ficção, a necessidade de uma duplicação de visões se torna urgente. Ninguém suporta mais um mundo devassado e achatado.

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Anderline, ou simplesmente Line — a que vem por baixo — é uma mulher muito feia. Mocreia, bagulho, jabureia, ela mesma se define. Sabendo que necessita de meios tons (de ficção) para adoçar sua vida rasteira, ela inicia uma viagem solitária pelo leste da Europa. Uma aventura em que experimenta os piores lados do real — hotéis de terceira classe, bairros proibidos, personagens sinistros. Tão importante quanto a busca de aceitação da feiúra, porém, é sua procura incessante de uma identidade. Precisa assumir-se como personagem de ficção. Sabe que um Autor a manipula e dirige seu destino — e contra ele se afirma. É uma personagem ativa, que coloca em questão, a cada página, a condição ficcional que lhe é imposta.

Ultrapassa, assim, a bruta fronteira que separa a imaginação do real. "Nunca confundi tanto os limites entre ficção e realidade", Anderline admite. Muito além da Europa escura, ela viaja através dessas fronteiras que nunca se deixam definir. Tanto de um lado — ficção — como do outro — real —, elas se dissolvem, irreconhecíveis. Ainda se lamenta Line, em um inútil saudosismo, que "bom era o tempo em que a poesia e a prosa se uniam à religião na aposta na capacidade humana de ascender da inconstância terrena à estabilidade fundamental". Ocorre que, no mundo contemporâneo, tal estabilidade não existe mais. Tudo o que temos é a volubilidade. "A partir de certo momento", continua Line, "trocaram aclive por declive e se fixaram na construção da pior imagem possível do próprio ser que as produz". Esse ser incapaz da grandeza e privado do sublime — esse prisioneiro do real — se expressa não só no ser humano que já não sabe o que faz, mas nos personagens, como a própria Anderline, que já não sabem quem são.

Dau Bastos manobra com desenvoltura os frouxos limites da existência. Narra uma história de ação — o relato eletrizante de uma viagem —, mas não se distancia do que escreve. Além de refletir sobre o que faz, leva seus personagens a pensar a respeito de si mesmos. É a própria Line quem — inspirada pelas teorias do crítico húngaro Georges Lukács — ajuda seu Autor a concluir que um escritor nunca escreve o que quer. "Todo ficcionista com um mínimo de honestidade passa a vida convencido de não haver produzido obra-prima e intuindo a existência de um texto supostamente impecável que, no entanto, nunca consegue colocar no papel". Outra fronteira, assim, se rompe, desmentindo a harmonia do real. O próprio Bastos experimenta essa cisão. Desdobra-se em sua personagem, interfere no texto para — nele mascarado — distanciar-se e pensar. E, assim, exibe seu intenso incômodo com seu próprio escrito. Atitude que não só o engrandece como escritor, como potencializa sua prosa.

Para expandir sua ação dentro da narrativa, Line assume outras identidades — como a da barraqueira Ducranco. No papel de narradora do romance, ela não se esquiva, ainda, de criticar seu próprio leitor. "Pronto, lá vem o leitor, (...), perguntando que diabo de problema tenho eu que deslizo de uma cena quebra-coco para uma reflexão maçante e moralista", desabafa. De vez em quando, precisa descansar de tantos desafogos para se concentrar em sua história, ou o fio ficcional se rompe. "Contrariada, mas forçada a levar esta narrativa até meu completo despedaçamento, fecho a cortina deste fragmento". Line sabe que o destino final de sua viagem — em que atravessa cidades como Hamburgo, Budapeste e Cracóvia — é o Mar Negro, no qual se dissolverá, em uma experiência equivalente à morte. Meio personagem, meio humana, Line reconhece que, no futuro, por mais que esperneie e resista, se dissolverá no grande magma.

Não tem pudor em criticar os humanos que a leem. "Sim, leitor, vocês, humanos, não se emendam. Claro, se eu mencionar o processo de destruição do planeta, você me chamará de exagerada, catastrófica, agourenta". Recorda então Copérnico — um dos alunos da Universidade de Cracóvia, cidade que ela visita — que nos mostrou que, em vez de centro do universo, a Terra é só um planeta pequeno e desorientado, sustentado pela força do sol. "Sim, porque a descoberta acabava com o antropocentrismo". Descoberta, agora, que ela utiliza para questionar o estatuto dominante do humano, em detrimento da sempre desprezada ficção que ela representa.

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Em alguns momentos — talvez na maioria — a própria Anderline já não sabe quem é. Em Cracóvia, ela escreve em um e-mail para sua amiga Bê, que a hospedou em Hamburgo e agora acompanha sua viagem virtualmente: "Acho que tou enlouquecendo. Lembra da velha suspeita de que não sou pessoa, mas personagem?" Em outras palavras: se nós humanos, apesar de nossa arrogância, não podemos responder com segurança quem somos, por que um precário personagem de ficção poderia fazer isso? Sabe, apenas, que é "protagonista de um romance cujo the end coincidirá com meu decesso". Fechada a última página, o personagem desaparece. Mas para onde irá? Será que personagens de ficção também se apegam a noções humanas como as de Céu e de Inferno? Será que também eles se salvam pela projeção de uma existência além túmulo?

O romance de Dau Bastos nos conduz, assim, a uma viagem para além dos limites da literatura. Um Mar Negro — como o mais misterioso mar europeu — aguarda a todos na última página. O que vale não é o destino, mas o trajeto. O que fica, tênue linha entre real e fantasia, é a nobreza da aventura que conseguimos abraçar.

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