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A leitura de Região – Ficções, Etc. (Companhia das Letras), novo livro de Zulmira Ribeiro Tavares, reafirma algo que já se evidencia em toda a sua obra anterior: seu comprometimento intransigente com a transformação. O novo livro é um estimulante resumo de seu trabalho literário ao longo de quatro décadas, já que reúne textos dispersos escritos, e muitos já anteriormente publicados, desde os anos 1970.

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Contos, poemas e até um ensaio breve – que traça um vínculo surpreendente entre Nicolai Gogol e Monteiro Lobato – expõem uma Zulmira sempre inquieta, que faz da indecisão e das guinadas bruscas e ferozes a sua estética. Mostram uma escritora que tempera temas densos e difíceis com um sofisticado humor e ironia. Uma mulher que sabe rir de si e do que faz, e só por isso escreve com leveza e sem afetação.

A caminho dos 83 anos de idade, Zulmira Ribeiro Tavares é conhecida por sua posição discreta na cena literária brasileira. Quieta em seu canto, pode arriscar-se em intempestivas experimentações e, ao mesmo tempo, delas se distanciar. Um exemplo eloquente está no conto de abertura, "A Curiosa Metamorfose do Sr. Plácido", relato em que a escritora relativiza nosso fascínio pelo novo e debocha, com elegância, de nosso culto às inovações. O curioso é que Zulmira é, ao mesmo tempo, uma inovadora, e, nesse aspecto, podemos pensar até que ponto o perplexo Sr. Plácido não é, um pouco, ela mesma.

Autora de uma literatura que pensa – e pensa para valer –, Zulmira, ao mesmo tempo, assinala a fragilidade das ideias humanas, que quase nada são diante da realidade brutal da carne e da morte. Este é o tema de "A Coisa em Si", conto em que o conceito de Emmanuel Kant é tratado com fascínio, mas, ao mesmo tempo, com o necessário desprezo. Trata-se da história do escritor Jarbas Toledo, de 62 anos, e de sua "perplexidade diante da vida". Jarbas é um pensador que, no entanto, não consegue ver o pensamento como abstração, mas, ao contrário, como desnudamento do real. A "coisa em si", de Kant, tanto pode ser uma mulher, "penteada com esmero, o cabelo preso por laquê", como pode ser uma pedra, aquela mesma que, um dia, lacrará seu túmulo.

Uma personagem hilariante como a Sra. Weber, que mantém em sua casa um concorrido salão literário, coloca em questão o próprio meio em que Zulmira, por força de seu ofício, se vê incluída. Nesse relato, ela dá belas rasteiras em seu leitor, com guinadas bruscas de expectativa e de direção. A certo momento, o leitor, perplexo, descobre que não lê a narrativa de vida de Jarbas Toledo, mas seu necrológio. Experiência que assinala o modo como estamos condenados, apesar de nossos esforços intelectuais, a viver sempre com "a aparência da verdade", e nunca com a verdade em si.

Mas o leitor deve ter cuidado: mesmo as conclusões a que é levado a chegar não escapam aos dentes comilões do Senso Comum. Isso se ilustra, com impiedade, em "O Senso Comum e o Bichinho Roedor", conto que tem a aparência de um relato clínico de psicanálise. Felipe Arantes, 33 anos, redator publicitário, começa a sofrer de inexplicáveis vertigens. Seu clínico geral logo percebe que não é bem o corpo, mas a vida que lhe dói, e o encaminha a um psicanalista. Sempre de guarda-pó branco e com atitudes insólitas, o analista procura desvendar a origem de sua dor. Julgando que seu analisando pensa demais e, portanto, sofre mais de pensamentos do que de fatos, ele lhe sugere uma espécie de "cura pelo senso comum".

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Mesmo o Senso Comum, porém, por mais banal que seja, é muito difícil de definir. Onde ele estará? "Fechou os olhos firmemente; tentou enxergar o Senso Comum". Ele pode estar nos estereótipos, pode estar no Bom Senso, pode estar nos clichês que, mecanicamente, encenamos em nosso cotidiano. Sim: talvez a solução, o psicanalista o leva a pensar, esteja em viver "ao sabor do momento". Tudo isso, que parece muito simples, entende um desalentado Arantes, é na verdade o mais difícil. O problema é que, quanto mais espontâneo luta para ser, mais se torna um estranho para os outros e para si. A espontaneidade se revela, assim, uma armadilha. Desabafa Arantes a seu analista: "Eu não disse? Não disse que tudo, até o 'sabor do momento' deve ser planejado?"

Mostra-nos Zulmira, com ironia e inteligência, que estamos inevitavelmente presos ao que somos. E isso – esse bichinho roedor que nos devora e faz de nós, nós mesmos – talvez não seja uma prisão, mas nossa única chance de viver. Seja, em resumo, a própria vida, que a cada um se apresenta de uma maneira, que deve ser não só aceita, mas devorada. Estranho retrato que, contudo, não cessa de mudar. Nesse aspecto, os relatos mais curtos de Zulmira – primorosos retratos que surgem diante de nós como súbitos clarões, para logo desaparecerem sem deixar pistas – refletem não só uma sofisticada estratégia literária, mas uma visão crua e até brutal da existência.

Seremos, apenas, nossos títulos e nossas etiquetas? – ela nos leva a pensar em um conto brevíssimo como "O Pai Solteiro Diante da Técnica e da Moral". Será a perfeição, na verdade, a forma mais bem acabada de feiúra? – ela nos propõe em "O Mandril". Serão os males físicos apenas uma casca para esconder sentimentos inomináveis como a mágoa? – Zulmira nos faz pensar com "Bruxismo". Serão nossos melhores dotes e prodígios indignos de exibição? – indaga, duramente, em "Larvas e Prodígios"? Quanto mais curtos, mais cortantes se tornam seus relatos. Mais radicais e incapazes de perdão. Mas para que mais serve a literatura, senão para nos defrontar com o que evitamos ver?

Em três magníficas visões do personagem Plácido, três flashes atordoantes, Zulmira Ribeiro Tavares reflete sobre a mentira, a memória e a lamúria. Em um deles, Plácido precisa ver Deus encarnado em um macaco para entender a lei da evolução, de Darwin. São tortos e inesperados os caminhos que nos levam à verdade. Mas, mesmo assim, tudo o que conseguimos fazer é roçar seu rosto de pedra. Como a Medusa, a verdade não deve ser jamais encarada. Uma escritora sutil como Zulmira nos ajuda, enfim, a aceitar nossa miserável condição.