Livro
O Mundo Insone e Outros Ensaios
Stefan Zweig. Tradução de Kristina Michahelles e organização de Alberto Dines. Zahar, 312 págs. R$ 54,90. Ensaios.
No ano de 1914, logo após o início da Primeira Guerra Mundial, o escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942) escreveu uma série de quatro artigos inesquecíveis com suas reflexões a respeito do conflito. Eles foram incluídos, depois, em seu primeiro livro de ensaios. Chega a ser arrepiante a atualidade desses textos, que reencontro agora em O Mundo Insone e Outros Ensaios (Zahar, tradução de Kristina Michahelles e organização de Alberto Dines). De formas imprecisas, secretas, mas fortes, e dando o salto espantoso de um século, eles ligam o mundo em que Zweig os escreveu ao mundo em que hoje vivemos.
Detenho-me no ensaio que dá título ao livro, texto de uma claridade assombrosa, que rasga a cortina de fantasias em que se envolve nosso século 21. Não vivemos mais uma "grande guerra", mas parece que uma guerra surda os recentes escândalos de espionagem internacional confirmam isso nos perturbam e roubam o sono. "Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias", inicia Zweig. "A respiração tranquila do sono tornou-se curta e febril, e o tempo ardente abrasa as noites e confunde os sentidos". Inquietação, febre, agitação: um século depois, elas voltam a nos oprimir.
Os horrores da guerra, em um efeito paradoxal, refinam o estilo de Stefan Zweig. Sua descrição da luta é tão poética e profunda, embora dolorosa, que, por instantes, a guerra chega a parecer bela. "Quantas pessoas, aqui e ali, que normalmente deslizavam da noite para o dia no negro barco do sono, (...) escutam agora os relógios andando, andando e andando". Conclui, logo depois: "Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos todos os dias".
É um sentimento contemporâneo: o de que os fatos penetram nossas vidas com contundência e nos transpassam. Descreve Zweig, numa imagem que cabe para hoje: "E a alma sabe disso, ela se expande e, em seu pressentimento, em seu anseio, quer captar algo disso". Todos lutamos, loucos, contra nossas agendas, contra a tempestade de informações, apelos e de aplicativos, contra embora isso esteja sempre a nosso favor um excesso de mundo que nos sacode e acorda.
Estamos também ligados de uma maneira inexorável, contra a qual não adianta lutar. Avanço em Zweig: "Entre os que estão próximos e os que estão distantes flutuam fios invisíveis de amor e de preocupação, um tecido do sentimento infinito encobre agora o mundo, de noite e de dia". O que esse paralelo que não me sai da cabeça realmente significa? Que avançamos, ou que retrocedemos? Ou, quem sabe, e provavelmente, as duas coisas? Mundo de paradoxos, ele se torna mais complexo e mais exigente. Pouco espaço nos resta para dormir e para contemplar. Para a quietude.
Prossegue Zweig, em outro paralelo paralisante: "Milhares de pensamentos escavam o sono, cuja construção oscilante desmorona sempre, e por cima do homem solitário ergue-se vazia a escuridão povoada de imagens". Hoje também, vivemos engolfados por um excesso de imagens, que nos acordam, que nos chamam para a vida em um mundo cada vez mais vasto e que nos energizam. "Todos vivenciam dentro de si uma visão que transcende a esfera normal de sua existência". Parece que o mundo nos pede mais do que podemos dar. Damos nosso tempo, nossas forças, nossas noites, e ainda assim é insuficiente. A guerra presenciada por Zweig também levava o mundo muito além de si. Dele exigia muito mais do que ele possuía.
Descreve Zweig, ainda, os efeitos desta agitação sobre a natureza. "Nas estações [de trem] escutam-se as vacas mugindo mansas nos vagões; retiradas de seus pastos cálidos e macios para o desconhecido". Eis o que tento dizer: que quanto mais ciência e técnica se expandem e isso só pode ser bom, isso é bom , mais, no entanto, nossa noção do desconhecido e do "a conhecer" se expande. Se respondo a dez e-mails, tenho mais trinta ou quarenta a responder. Se acesso dez vezes o Facebook, ele exige que eu o faça outras dez, e mais dez, e mais dez. Disparos de informação, de produção, de conexão, de alerta. Conecto, mais uma vez, à escrita de Zweig: "Disparos soam e ressoam através das montanhas caladas, acordando os pássaros, tontos, em seus ninhos". Arrisco-me a pensar: quem são esses pássaros, senão nós mesmos? Avançamos em labirintos, de que desconhecemos as saídas.
A ligação mais profunda entre os homens, que só pode ser comemorada como uma conquista preciosa do humano, nos precipita, contudo, no vazio e quantas pessoas e quantas coisas arrastamos atrás de nós. Sempre falando da Primeira Guerra Mundial em que estava imerso, Stefan Zweig escreve: "Cada destino forma outros destinos a partir de si, pequenos círculos que se dilatam em ondas no mar das emoções e se ampliam; em enorme união, e mútua determinação da experiência, ninguém se precipita no vazio ao morrer: cada um arrasta algo dos demais consigo". A imagem é perfeita para nosso mundo também, no qual estamos cada vez mais comprometidos uns com os outros, no qual arrastamos conosco, cada vez mais, os destinos dos que nos rodeiam.
A participação é inevitável (não chega a ser mais uma escolha), é compulsória, mesmos para aqueles que não estão nos campos de batalha. "Pois esses tempos não aceitam que alguém deixe de participar, e estar distante do campo de batalha não significa estar de fora". É nossa noção de espaço que se amplia, distorce e altera. Mesmo dentro de casa, mesmo trancados em nossos quartos, um e-mail, uma mensagem no face, uma transmissão em tempo real e o mundo inteiro exige a nossa presença. Há uma transformação inevitável: a questão é para que direção ela nos conduz, ou pode conduzir. A questão não é mais se estamos ou não envolvidos, mas desde qual posição marcamos presença e nos envolvemos.
Ainda assim, conclui Zweig, nenhum humano suporta a insônia todo o tempo. É verdade, ele diz: "Todos nós teremos que nos reorientar, do ontem para o amanhã, atravessando esse impenetrável hoje". Mas será preciso parar e respirar de novo. Um novo sono. "Uma nova paz oh!, quão distantes brilham ainda suas asas luminosas", Zweig suspira.
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