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Aqui na Vila temos três tipos de leitores: os que leem, os que escrevem e os que não leem. Paulinho Ventura é o maior leitor de todos os viventes, devorador de livros e de papéis, sabedor de todos os clássicos e conemporâneos. Criou uma biblioteca comunitária só para ele e vive no quartinho dos fundos, o único não ocupado pela livrarada que abarrota as outras dependências.

Leitor menos modesto e mais arteiro é Laurinho Telefone, autor de vários poemas de T.S.Eliot, que costuma ler para amigos e amigas em telefonemas dados durante a madrugada. Ao acordar os incautos para ler os poemas, perde amigos, mas conquista novas namoradas.

E há Carlão Borracheiro, que não lê, nunca leu, jamais lerá coisa alguma. Alimenta, ao contrário, aquele orgulho feroz que só a mais completa ignorância é capaz de proporcionar. Já tem tanta gente lendo, pergunta ele, por que vou perder tempo?

Quanto a Sutil Pedroso, não se sabia se era ou não leitor, pois tem por hábito chegar ao boteco já torrado e macambuzio, resmungar um boa-noite rude e ocupar a mesa mais afastada, onde fica a beber olhando fixo para a parede em frente. Tipo indecifrável. Só sai dali carregado por Carlão Borracheiro, quatro ou cinco horas depois. Assim era Sutil Pedroso.

Até que as um dia ele chegou mais cedo e cumprimentou, alto e bom som:

– Boas noites, senhores.

Laurinho cutucou Paulinho Ventura e disse:

– Andou lendo Machado de Assis.

Os dois caíram na gargalhada e Sutil Pedroso fez que não era com ele. Lá pelas tantas, quando Paulinho lamentou o tédio atual dos livros publicados – enredos de série de televisão, no máximo, comentou o erudito – Sutil interferiu na conversa:

– Sabe...

Os dois acompanharam assombrados aquela torrente de palavras que o ex-mudo disparou:

-–...dia desses li um livro.

Laurinho sussurrou para Paulinho:

– Não te disse?

– Que livro? perguntou Paulinho.

– Livro, ora.

– Podemos saber o título? indagou Laurinho.

– Nem sei.

Laurinho ia perguntar pelo autor, mas calou-se quando viu Sutil puxar uma cadeira e sentar a seu lado.

– Não sei de nome nem de autor. Livro de história. Mas tem uma coisa que não me saiu da cabeça. O dia 14 de maio de 1888.

– 13 de maio, corrigiu Laurinho.

– Não, poeta, disse Sutil, como quem atira uma pedra. É 14 de maio mesmo. O dia seguinte. Já imaginou aquela turma toda nas ruas, livre, andando de um lado para outro? Quer comer, cadê comida? Quer dormir, cadê casa? Cadê emprego e grana? Acho que dava um romance.

O silêncio tomou conta do boteco e mesmo Cego Tião interrompeu a anotação de um jogo de bicho e deixou dona Martinha esperando. Estava pasmo. Bem que achou aquele boas noites muito estranho. Que dera no homem?

- E daí? Paulinho e Laurinho perguntaram em uníssono.

– Só isso. – e Sutil acrescentou o que lhe veio à cabeça: Tem outra coisa...

– O quê? – foi o Cego Tião quem perguntou, já ao lado da mesa.

– A Domitila. Sacam a Domitila? perguntou Sutil.

– Sacamos – responderam os três.

– Tá no começo do livro. Pois perto dessa Domitila marquesa de Santos, o mensalão é pinto. Perto dela a distribuição de cargos e verbas de nossos dias é fichinha.

Laurinho e Paulinho se olharam, mudos. O cego voltou ao balcão para completar o jogo de dona Martinha, que já tamborilava sobre o balcão. Sutil Pedroso levantou-se e, antes de sair do boteco – pela primeira vez usando as próprias pernas – colocou o copo sobre a mesa e disse:

– Cês pagam.

E nunca mais abriu a boca no boteco. Voltou ao velho hábito: chega, pede a primeira dose, bebe olhando para a parede em frente até ser carregado por Carlão. Volta dois dias depois. Nunca mais disse palavra, nem um simples boas noites.

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