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 | Ilustração: Gilberto Yamamoto
| Foto: Ilustração: Gilberto Yamamoto

Há uma frase de Dora, personagem de Fernanda Montenegro em Central do Brasil, de Walter Salles, que até hoje me emociona e perturba.

Sem se despedir do menino Josué, vivido por Vinicius de Oliveira, ela embarca, no desfecho do filme, em um ônibus caindo aos pedaços, de volta ao Rio de Janeiro, e lhe escreve uma carta de despedida. Nela, fala de sua já distante infância, e conta sobre quando o pai, maquinista ferroviário, a deixou, ainda pequena, fazer soar o apito do trem. Um momento perdido no tempo. Mas único, inesquecível para ela.

Dora pede ao garoto que, quando sentir falta dela, dê uma olhada no retratinho que tiraram juntos, e arremata a carta: "Eu digo isso porque tenho medo que um dia você também me esqueça. Tenho saudade do meu pai. Tenho saudade de tudo."

Esse epílogo, embora triste, melancólico, embute uma ponta de esperança. Josué, orfão de mãe, encontra os irmãos mais velhos, e ganha a perspectiva de ter, enfim, uma família. E ela, antes uma mulher amarga, desesperançada e egoísta, parece reencontrar a sua humanidade.

Mas voltemos à frase de Dora, aquela em que a personagem diz ter medo do esquecimento e, ao mesmo tempo, sentir saudade de tudo. Quem já viveu um tanto, e tem, como eu, o hábito de olhar com frequência pelo retrovisor, de revisitar estradas percorridas, em busca de novos significados para antigas paisagens, sente, como a personagem de Fernanda Montenegro, o temor de que essa jornada seja, no fim das contas, uma longa estrada solitária. E, além da nostalgia, a tal "saudade de tudo" seja o único legado da existência quando finalmente chegarmos ao destino, seja ele qual for.

Nas últimas semanas, ao assistir aos primeiros capítulos da nova versão de Gabriela, revi alguns momentos do passado como quem vê um filme e, confesso, fui derrubado por uma lufada de nostalgia.

Tinha 10 anos quando a histórica adaptação do romance de Jorge Amado estreou na Rede Globo. A novela, escrita por Walter George Durst e dirigida por Walter Avancini, virou em pouco tempo um fenômeno cultural – e um acontecimento de grandes proporções na minha família. Só se falava das ousadas – e sensualíssimas, para os daquela, ou de qualquer época – cenas de amor entre a personagem-título, uma desinibida retirante do interior da Bahia, de pele morena e pés descalços, e o turco Nacib, que na verdade é sírio-libanês.

Gabriela e Nacib se deitavam e se amavam diante das câmeras – e do Brasil inteiro – ao som de temas de Dori Caymmi e de "Alegre Menina", cujos belos versos eram cantados por um ainda quase desconhecido compositor alagoano chamado Djavan. E o país, em plena era da pornochanchada, se chocava e se deleitava, encantado em ver tudo aquilo no conforto do lar.

Talvez por causa desse alto teor erótico, considerado uma temeridade nos anos de chumbo de ditadura militar, eu era, digamos, "proibido" de ficar acordado até as 10 horas da noite para assistir ao folhetim. "Não é programa para criança", cansei de ouvir. Mesmo assim, eu desafiava as regras domésticas e lembro de ter visto, escondido, muitos dos 130 e poucos capítulos de Gabriela.

Esperava minha mãe, que entrava no trabalho muito cedo, pegar no sono e, pé ante pé, saía do quarto sem fazer qualquer barulho. Sentava-me no tapete da sala de nosso partamento em Copacabana, a dois, três palmos do primeiro aparelho de televisão em cores que tivemos, e mergulhava na Ilhéus dos anos 20. Inebriado.

Tamanha foi minha surpresa, portanto, quando, na semana de encerramento da novela, em outubro de 1975, meus pais me disseram que eu iria ver Gabriela pessoalmente. "Como assim?", devo ter pensado. Tínhamos conhecidos envolvidos na organização de uma festa que seria realizada, com a presença do elenco principal, no antigo Pavilhão de São Cristovão, hoje Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, no Rio de Janeiro.

Muita gente, forró comendo solto, temas da novela nos alto-falantes. E nada da Gabriela. Até que fui puxado pela mão até um canto do grande salão, onde estava parte dos atores da novela. Primeiro vi Mundinho Falcão (José Wilker), que, para meu espanto, estava loiro, já com ares de outro personagem de Amado, o mulherengo e despudorado Vadinho, de quem, àquela altura, eu nunca tinha ouvido falar. E, logo em seguida, me levaram até ela: Gabriela, já com os cabelos alisados e bem mais curtos, à altura do ombro, se transmutando em Dona Flor. Linda, de grandes olhos castanhos e muito simpática, ela me perguntou: "Você é paranaense como eu?"

Mudo de timidez, não disse nada. Até que ela se abaixou um pouco, me olhou fixo e disse: "Você gosta da história do Gato de Botas. Eu sou a Gata de Botas!". Imediatamente reparei que as chinelas ruças de Gabriela eram mesmo coisas do passado. No seu lugar, calçados de canos e saltos bem altos. Daí veio o beijo, estalado, no rosto.

Sônia Braga, Gabriela e Dona Flor tinham me beijado. E agora as três me afagavam os cabelos.

Do resto daquela noite sobrou muito pouco em minha memória. Apenas lembro de termos dado carona para a atriz veterana Heloisa Mafalda, a Maria Machadão, dona do Bataclã, o prostíbulo da novela, que morava dos nosso lados. E que voltei dormindo, feliz da vida, no carro.

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