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Performances de Olivier de Sagazan colocam em xeque os limites entre a criação artística e o envolvimento pessoal | Kika Antunes/Divulgação
Performances de Olivier de Sagazan colocam em xeque os limites entre a criação artística e o envolvimento pessoal| Foto: Kika Antunes/Divulgação

Qual o limite da entrega do artista enquanto cria? Nenhum, alguém irá dizer. "Uma verdadeira obra de arte exige a completa simbiose entre autor e criatura." Fiquei pensando nisso quando soube que a catalã Angelica Liddell, autora de A Falsa Suicida, em cartaz em ótima montagem no Espaço Cênico, cortava-se e usava o próprio sangue em uma cena em que Ofélia inicia seu ritual de morte.

Na adaptação curitibana, a opção foi escorrer um batom vermelho pelos braços. Confesso que fiquei aliviada com a escolha.

Mas dar o suor e o sangue, literalmente, pela arte, não é raro. Os colegas do coletivo radical Couve-flor me avisam sobre a autointitulada "avó da performance", a sérvia Marina Abramovic, que se coloca em risco a cada apresentação. Aparece enrolada em uma cobra, com escorpião no rosto, cortando o formato da estrela de Davi na barriga e se chocando contra paredes. As criações de Marina são tema do filme Balkan Baroque (1999), de Pierre Coulibeuf.

"Ela já chegou ao ponto de deixar um revólver com uma bala à disposição do público, tendo ela como alvo", conta o ator Eduardo Simões.

Ele lembra ainda um caso local, de Ricardo Marinelli, integrante do Couve. Na performance se ele fosse outra coisa não seria muito diferente, ele adaptou várias facas ao figurino, e era obrigado a se mover muito lentamente para não se cortar. Como não é uma máquina, acumula várias cicatrizes desde aquela época.

Outro trabalho que me atiçou a curiosidade sobre os limites entre a criação artística e o envolvimento pessoal foram as performances do congolês radicado na França Olivier de Sagazan, apresentadas no Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte, que termina amanhã.

Durante uma crise, ele se interessou em redescobrir o próprio rosto, e passou a aplicar argila, tinta e galhos à cabeça. Às cegas, criou esculturas e movimentos que decidiu replicar em público.

Ao assisti-lo, de terno e gravata no início e, aos poucos, sujando-se e despindo-se, enquanto murmura reclamações contra a vida e Deus, em francês, o espectador fica em dúvida se está vendo a reprodução de um momento criativo ou o próprio ato, acontecendo de novo.

Me explico?

Encontrei uma frase da italiana Elena Onori, doutora em História da Arte, que vai no sentido da primeira hipótese. "O artista entra em uma construção mental e física que realizou interiormente diante de seu público, ele não é mais ele mesmo, mas aquilo que representa."

Algo em comum com peças de teatro não exatamente performáticas, mas que foram gestadas ao longo de um processo de vivência de seus atores e diretores. Veja o exemplo do grupo mineiro Teatro Público, que desenvolveu a peça-performance Naquele Bairro Encantado ao longo de um ano de residência na Lagoinha, vizinhança empobrecida de Belo Horizonte. Detalhe: os seis integrante sempre usaram máscaras, em qualquer interação com os outros moradores. E é assim que se apresentam enquanto carregam os espectadores para cima do morro, conversando com o sapateiro, o dono de boteco, a octogenária tagarela.

Não chegam a se machucar pela arte, mas envolvem-se de corpo e alma do mesmo jeito.

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