| Foto: Felipe de Lima

Incrível como a realidade se parece com o teatro. Ou seria o contrário? "A arte imita a vida", numa mimese predita por Aristóteles que é um dos pilares do encantamento da arte... O fato é que outro dia assisti a uma peça-realidade no ônibus. Nelson Rodrigues faria um estrago com esse material. Foi assim:

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Na fila do coletivo. Garota arrumada ao celular:

– É amor, eu tive que descer no ponto final, acabou a linha. Entrei no fim da fila e vou voltar agora. Onde eu desço?

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– ...

– Tá. Eu também. Atendi um menino, mordida de cachorro. Dentro da escola. Falei pra vó, que leve no hospital. Pode dar raiva.

Dentro do coletivo, duas passageiras na escada, de costas. Nos primeiros bancos depois da porta, a avó com três crianças em volta. A do lado reclama:

– Vó, a moça falou, tem que ir no hospital...

– Tá, tá, não tem furo, olha! Isso aí eu passo pomada e sara.

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No banco de trás, a menina:

– Vó, aproveita e faz raio-x!

A avó para os passageiros ao lado:

– Eu tive uma queda feia, sabe? Olha meu joelho, como tá inchando...

– A moça falou! Né moça, que tem que ir pro hospital?

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Ela finge que não ouve, mas já sem ter como ignorar:

– É, é sim...

O terceiro neto canta com a cabeça para fora da janela:

– Paz, paaaaz...

– E você aí não devia nem tá sentado! Dá lugar pros idosos, olha aí, tá cheio de idoso em pé.

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Olhar constrangedor entre os passageiros. As mulheres na escada se olham.

– Vó...

– Na igreja a gente vê.

Menina:

– É, Deus cura...

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– Para, Ana, de zoar!

– Eu tenho fé! Se você não tem é problema seu!

– Cala a boca!

A avó bate na cabeça da menina.

– O ônibus inteiro tá escutando o show de palhaço de vocês. E sem pagar! Vocês não recebem nada por isso.

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O menino de cinco anos com a cabeça para fora do coletivo: Paz, paz, tão doce paz...

– Esse é o único normal, os outros são bipolares. Eu mereço, dois especiais em casa é dose pra leão. O outro não, é só criança mesmo.

– Vó, tem que tomar injeção!

– Não tem furo.

– Senão sai baba.

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– Você já baba de manhã, tarde e noite. Não vai mudar nada. Agora se espumar é que é o problema.

Menina:

– Vó, ele pôs a cabeça pra fora... (A avó bate na cabeça dela.)

– Ela tem 15 anos, mas a cabeça igualzinha o de seis.

– Vó, o hospital!

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– Tem que descer aqui!

– Vó, é no outro! No outro!

A família sai dos seus lugares pedindo passagem rumo à porta. A avó, quase descendo, esclarece aos passageiros:

– A marca é de chupão, foi ele que fez, assim ó. Só pra inventar que foi cachorro.

– Aqui, vamos descer... Só vó mesmo! Eu tenho muita paciência!

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Descem. Passageiros se olham enquanto o coletivo some.