| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Um tigre de bengala. Majestoso e ameaçador, porque desprovido de racionalidade e movido apenas por seus instintos, que o fazem pegar, matar e comer em nome da sobrevivência. Esse é Richard Parker, um dos protagonistas de As Aventuras de Pi, belo filme do cineasta taiwanês Ang Lee, baseado no romance A Vida de Pi, do canadense Yann Martel.

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Quem já viu o longa-metragem, indicado a 11 Oscars, sabe que Richard Parker pertence ao zoológico do pai do personagem-título, instalado em uma pitoresca cidade balneária da região de Pondicherry, de colonização francesa, no sudeste da Índia. Ele é o rei do pedaço, aquele que todos querem ver de perto, capaz de provocar tanto medo quanto desejo.

Assim como o resto dos bichos, a fera é levada em uma longa jornada através dos oceanos Índico e Pacífico, rumo ao Canadá, onde a família pensa em vender os animais e, com o dinheiro, reiniciar a vida no Novo Mundo.

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Uma tormenta de proporções diluvianas, no entanto, muda os rumos da história. E transforma de maneira definitiva a vida de Pi, um adolescente que acaba descobrir Dostoievski e o amor.

Ele está às voltas com dúvidas existenciais e filosóficas, muitas ligadas à religião – o garoto não se questiona sobre a existência de Deus, mas encontra razões para seguir, ao mesmo tempo, e com igual fervor, o hinduísmo, a Igreja Católica e o Islã. As três afiliações o tocam, por diferentes motivos, todos de alguma forma ligados a uma necessidade profunda de acreditar. Uma vocação inata para a fé.

Único sobrevivente humano de um naufrágio que lhe rouba os pais e o irmão mais velho, Pi sobra quase por acidente. Em um bote, fica à deriva na Fossa das Marianas, região mais abissal do Pacífico, em companhia de Richard Parker. O animal é "o outro", aquele sobre o qual não se tem qualquer controle, e cuja natureza selvagem, irracional, faz do garoto presa fácil.

Como não deseja ficar só – o que significaria uma espécie de morte em vida –, mas também não quer acabar virando comida de tigre, Pi tem de se aproximar do felino. Não para domá-lo, já que isso seria impossível, mas para de, alguma forma, adestrar seus instintos, e assim com ele conviver até que o resgate, ou um milagre divino, os salve.

A história de amor, medo, tolerância e, sobretudo, aprendizado entre Pi e Richard Parker é dilacerante. Porque evidencia o quanto estamos despreparados para compreender o desconhecido, o que está além dos nossos limites. O primeiro passo dado pelo garoto nesse sentido, anos antes da viagem, é se projetar nesse outro ser que tanto o fascina.

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Pi atribui à fera humanidade, uma subjetividade estrangeira ao felino, mas que transborda no garoto, que começa a despertar para a vida e seus afetos. Ele se encanta pelo animal. O pai chega a alertá-lo sobre esse risco, mas apenas a experiência do convívio, possibilitada pela tragédia, permitirá que ele consiga trazer o tigre para dentro de si, para finalmente compreendê-lo.

Esse encantamento tem mesmo muito desse projetar-se no outro, atribuindo-lhe traços idealizados de perfeição transitória, que, ironia das ironias, vai sendo moldada à imagem e semelhança dos anseios e sonhos de quem a constrói. Por isso, o despertar desse estado pode ser por vezes frustrante, doloroso. A menos que se transforme em algo maior e mais profundo.

O objeto desse sentimento, muitas vezes alheio a tudo que se passa, tem pouco a fazer. É mera projeção e, quando tocado, ruge, quase em autodefesa, como Richard Parker. E pode, sim, pegar, matar e comer. Ou simplesmente seguir seu caminho, sem olhar para trás, como faz o felino quando sua jornada com Pi se encerra, na costa do México.

O garoto urra de dor, chora por lhe ter sido negado o direito a uma despedida, porque se julga, nesse momento de ruptura, ainda o dono absoluto da história. Não é.

As Aventuras de Pi se estende além desse triste não adeus entre Pi e a fera. O garoto, ao contar o que viveu, colide com a descrença. "Um adolescente e um tigre à deriva por meses em um bote salva-vidas? Como assim?"

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Resta-lhe, então, reescrever seu conto, linha a linha, dele tirando seu tom de fábula, transformando-o em uma narrativa grotesca de sobrevivência, violência, morte e profunda dor. É nela, possivelmente, que reside a verdade, ainda que, como sugere o próprio Pi, anos mais tarde, quando já é homem feito, Deus talvez prefira se fazer presente nas linhas tortas da narrativa inventada, da ficção.

Mas, voltando à versão mais nua e crua da odisseia de Pi, nela, ele e Richard Parker, o um e o outro, se resumiriam a um único ser. Ao mesmo tempo humano e bestial, razão e instinto entrelaçados, se fundindo, em conflito e comunhão. Um híbrido, enfim. A fera emerge dos subterrâneos do garoto, para confrontá-lo, desafiar seus limites e certezas, mas também para salvá-lo. E, por fim, abandoná-lo, mas não mais à deriva.

Por isso, ouso dizer, estamos sempre à procura de um Richard Parker que nos ameace em nossas fragilidades, e nos conduza a outras instâncias do que somos, indomáveis e doídas, porém mais vivas e, talvez, próximas do essencial. Rugir, afinal, é preciso.

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