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Entre 1903, data de sua entrada para a Gazeta de Notícias, e o falecimento, em 1921, João do Rio viveu o paradoxo de ser ao mesmo tempo, uma personalidade dominante da vida intelectual brasileira e uma figura marginalizada, inclusive nos meios profissionais, que o desprezavam e temiam (João do Rio. Coleção Melhores Crônicas. Sel. e pref. Edmundo Bouças e Fred Cóes. São Paulo: Global, 2009). Nos quadros da história literária, é escritor menor, mas jornalista que deixou, pelo menos, dois livros da maior importância historiográfica: As religiões do Rio (1904) e O momento literário (1905). Quanto às obras chamadas "de criação", comparam-se vantajosamente com a média do que se produzia no período, essa terra de ninguém em que começavam a germinar o ocultamente as sementes do futuro Modernismo.

Enquanto escritor, quero dizer, do ponto de vista mental, ele pertenceu às gerações que, nas duas primeiras décadas do século XX, prolongavam os valores evanescentes do anterior e que, como se sabe, só iriam definitivamente desaparecer com a guerra de 1914. São sobreviventes de um mundo que se debatia entre os dogmas do cientificismo e as inquietações do misticismo; em termos literários, entre o Naturalismo e o Simbo­lismo. Lembre-se que suas obras mais importantes refletem por instinto essas preocupações obscuras: As religiões do Rio registram a multiplicação de seitas que se desmentiam e desautorizavam umas ás outras, e O momento literário, claro balanço final da literatura estabelecida ou seja a literatura que se desfazia. Ora, essa era em conjunto, a literatura do Naturalismo: a "arte sã", e do Realismo, a arte da liberdade, de "ataque às convenções, aos imitadores, aos impotentes". Nós, os moços, acrescentava num postulado desafiador, destinado a alimentar ainda mais os antagonismos – "nós, os moços, que se batem pela reação naturalista, que queremos o Socialismo, mesmo pelos mais violentos métodos como uma erupção primária da Anarquia, a bomba".

Diga-se, de passagem, que, ao contrário do que pensava e continuam a repetir os manuais escolares, Naturalismo e Simbolismo tinham fronteiras comuns, havendo um simbolismo do naturalismo e um naturalismo do simbolismo, assunto, aliás, já estudado pelos especialistas. Rocha Pombo terminava No hospício, novela paradigmática do simbolismo brasileiro, com o grito anarquista por excelência: "Abaixo o Estado!". Partidário do nacionalismo, João do Rio desvendava as suas fascinações simbolistas no interesse pelas seitas re, entre as quais descobriu o grupo dos Falachas, judeus negros de origem etíope muito mais antigos que os próprios israelitas. É fato, de resto, praticamente ignorado entre nós, a que João Carlos Rodrigues não se refere na biografia de 1996 (Topbooks).

Há poucos anos, alguns imigrantes falachas etíopes tiveram a entrada proibida no Estado de Israel por serem negros, o mesmo acontecendo com os negros norte-americanos que pretendiam imigrar alegando conversão ao judaísmo. Sobre os falachas pode-se ler o que Alberto da Costa e Silva escreve em A enxada e a lança (2.ª ed. Rio: Nova Fronteira, 1996).

O naturalismo de João do Rio, que o levava a abordar temas provocadores como o homossexualismo e outras práticas eróticas, além dos ambientes bordelengos e o consumo da cocaína – muito mais difundido àquela altura do que imaginam os menos informados – surgia, igualmente, como estilo simbolista na narrativa das obras literárias, tal como o conto "impotência", que, como observa João Carlos Rodrigues, "mostra nítida influência de Às avessas de Huysmans, a bíblia do decadentismo [...]. Mais interessantes são as inclinações homossexuais do personagem [...]". Assim, por esse lado, João do Rio era um marginal da literatura corrente, além de marginalizado pelo farisaísmo contemporâneo.

Esse marginal chegou em 1910 à suprema consagração da Academia Brasileira de Letras mas cabe pensar que o instante culminante de ascensão coincida com o início do declínio, quando os inimigos se organizaram para destruí-lo a pretexto dos ideais nacionalistas que então faziam furor (no sentido literal da palavra). Foi episódio em que a baixeza humana, incluindo covardes agressões físicas, desceu a níveis inimagináveis. Nomea­damente por parte de Antônio Torres e Humberto de Campos, juntamente com os jornais de polêmica nacionalista (sempre em nome de uma "boa causa") – a nacionalização da pesca.

Antes disso, porém, ele tinha vivido os seus anos gloriosos, a ponto de ser elogiado com simbolista por um Oswald de Andrade, que se referia a Eva como o que "haverá de melhor do que a bela, a forte, a inteligente intriga de João do Rio".

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