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No romance de João Rodrigues Fontes (A Arte. São Paulo: Escrituras, 2009), o protagonista-narrador recupera os sentidos no quarto de hospital, ouvindo alguém dizer-lhe que tinha levado uma forte pancada na cabeça: "Instintivamente busquei tocar o lado direito do rosto, que pareceu começar a doer no exato instante em que ele mencionou a pancada. [...]. Uma súbita náusea tomou conta de mim – não pode existir sensação mais estranha que a de se ver, de repente, acometido de um ferimento cuja causa é inteiramente ignorada [...]. Quase ao fim da tarde [...] fui descobrir que, afora uma sonda vazia, nada mais me prendia à cama [...]. Sei que permaneci ainda alguns dias nesse hospital, mas não tenho certeza se estive consciente todo o tempo [...]".

A história se esclarece aos poucos numa narrativa escrita com admirável domínio da matéria e num estilo sem falhas. Uma das cenas culminantes é a da visita que, num gesto de cortesia, o narrador faz ao adversário, que acabara de derrotar: "Pietro estava deitado com uma das mãos sob a nuca, quando fui admitido no quarto. Com exceção de uma grande atadura ocultando o nariz fraturado e algumas escoriações leves sobre o rosto, parecia estar em condições melhores que as minhas, que entrei no quarto mancando da perna esquerda – na verdade, devo confessar que, maldosamente, exagerei um tanto o manquejar, a fim de que ele se lembrasse do que havia feito".

O que havia feito foi desferir-lhe violento pontapé na perna quando estava caído, o que, bem entendido, acarretou-lhe a desqualificação. O médico disse que seria preciso quebrar-lhe o nariz de novo, para repô-lo no lugar. É o momento do diálogo central do romance. Perguntado se se lembrava de alguma coisa, respondeu que se lembrava de tudo: "É gozado. Eu estava lá, e, ao mesmo tempo, não estava. Assistia ao meu corpo fazendo as coisas, mas parecia que não era eu quem comandava. É estranho. Sentia dor, medo, raiva, frustrações. Mas, de alguma forma, nada disso aferava a parte do meu cérebro que controlava meu corpo e meus reflexos [...]".

O segredo é que ambos estavam sob a ação do Tflox, poderosa droga inventada pelo dr. Neto, que aumentava a agressividade dos combatentes ao mesmo tempo que os tornava insensíveis à dor: "Diogo, certa vez, me contou que o empresário dele, junto com o médico, estavam dando para ele uma droga. Diziam que era para aumentar sua força e sua capacidade de suportar o cansaço durante as lutas, e também para eliminar o medo. O problema é que dava para perceber que estava destruindo a personalidade dele" – como seria de prever e estava acontecendo com o narrador, núcleo essencial da narrativa.

Consciente do que ocorria, este decide reagir: minutos antes da nova luta contra Pietro, e já nos preparativos finais a caminho do tablado, o treinador Santana percebe alguma hesitação: "Lúcio, você quer vencer esta luta ou não?". Mas, a essa altura, diz o narrador, o seu nervosismo se havia transformado em tépida apatia: "Desanimado, deixei cair a cabeça. Santana, porém, com um gesto de surpreendente determinação, agarrou meu queixo, forçando-me a encará-lo nos olhos. A mão fechada abriu-se diante do meu peito, sobre a palma, um pequeno frasco de vidro contendo um líquido azulado [...]". Assim chegamos o momento culminante: "Tflox B – pronunciei baixo [...]. Fechei o punho com força sobre a fria ampola; um leve sorriso de satisfação desenhou-se sobre os lábios finos de Santana – para num instante, quando minha mão se abriu deixando despedaçar com um ruído úmido, o fino vidro sobre os ladrilhos do piso. Ficamos calados os três, observando imóveis o líquido azulado desaparecer entre as canaletas dos ladrilhos".

Conhecendo por dentro a indústria do pugilismo, não podia ser outra a conclusão do narrador: "Desde que me feri naquela luta com o Pietro, alguma coisa mudou em mim. Não sei – passei a alimentar um ódio profundo por esse esporte, mas descobri, depois, que meu ódio era dirigido não ao boxe em si, mas a um grupo de pessoas que o fizeram detestável, incluindo, lamento dizer, em mesmo [...]". Abandonado pela mulher, os amigos e os antigos associados, o herói passa a viver sozinho, com a surpresa de que a mulher devolve o cãozinho de estimação, que havia levado consigo: "Não se deve amar nada em demasia", diz a amarga conclusão.

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