| Foto: Bennett

Não somos um país de cervantistas, tornando ainda mais excepcionais (nos dois sentidos da palavra) um livro como a Viagem ao Mundo de Dom Quixote (1950), de Josué Montello, e o ensaio de Ivan Junqueira com que se abre Cinzas do espólio (Rio: Record, 2009). O primeiro foi escrito provavelmente para concorrer ao prêmio instituído em 1947 pelos serviços culturais da embaixada da Espanha para o melhor artigo jornalístico daquele ano nas comemorações do quarto centenário de Cervantes. Também aspirei a essa distinção (havia manhãs, havia jardins naquele tempo!) com o "Estudo sobre Cervantes", publicado no O Jornal, do Rio, a 7 de setembro de 1947.

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A comissão julgadora, de que fazia parte e na qual foi certamente voz preponderante a poetisa Cecília Meireles, concluiu, entretanto, que nenhum dos trabalhos aparecidos merecia a honrosa distinção, frustando-se com esse veredito extremamente severo uma das raras oportunidades jamais surgidas entre nós para despertar o interesse pelo tema, e, com isso, desenvolver em nosso país os estudos cervantinos. A leitura do ensaio montelliano mais de meio século depois permite alguma dúvida, se não sobre a competência, pelo menos sobre a isenção da comissão julgadora, fato, aliás, corriqueiro na atribuição de prêmios literários. Seja como for, Josué Montello escreveu sobre o Quixote um ensaio não apenas informado sobre a abundante bibliografia do tema, mas comparável, em qualidade e finura de interpretação, ao que nela existe de melhor, sem excluir, claro está, os especialistas espanhóis mais destacados.

De minha parte, observei, àquela altura, nas primeiras linhas do artigo de 1947, que "quem tenha lido somente El Ingenioso hidalgo Don Qui xote de la Mancha, e se por acaso esse mal-afortunado leitor conhecer, além do Quixote, apenas os entremezes e trabalhos satíricos do autor da Galatéa, pode-se dizer que conhece apenas uma face, talvez a menos fiel, do genial escritor espanhol, ainda que a sua verdadeira personalidade esteja aparecendo a todo momento aos olhares menos distraídos". De fato, pode-se pensar que a exegese cervantina repousa sobre o equívoco colossal que é encarar o Quixote como a única obra "autêntica" de Cervantes, todos os demais textos e, em particular, as novelas exemplares, como trabalhos de circunstância, claramente secundários. Assim, por exemplo, ao organizar para publicação em volume o vasto material do I Congresso internacional sobre Cervantes, Manuel Criado do Val dividiu-o em duas partes, uma intitulada "Cervantes y Suas Obras Menores" (comédias, entremezes, as Novelas Exemplares, etc.) e a outra consagrada exclusivamente ao Quixote (Cervantes, su obra y su mundo. Madrid, EDI-6, 1981).

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Há, contudo, quem afirme, lembra Josué Montello a esse propósito, que o próprio Quixote foi inicialmente concebido como uma novela exemplar, o que se comprova, entre outros indícios, pelo aparecimento tardio de Sancho Pança. Além disso, e ao contrário do que se diz, Cervantes não costumava combater os livros de cavalaria, mas os maus livros de cavalaria, o que é diferente: o Quixote – novela exemplar que originalmente imaginou destinava-se a ser, não o antilivro de cavalaria, mas, ao contrário, o superlivro de cavalaria, passo indispensável para recuperar a idade de Ouro cujo desaparecimento lamenta em diversas passagens. O mesmo ocorre com respeito às novelas pastoris, que ele, muito significativamente, também tentou reescrever no plano de alta qualidade literária, comprometida pela subliteratura que a espécie havia provocado: "Aceita a tese de que o D. Quixote, nas suas origens, era uma novela exemplar, que se distendeu após a criação providencial de Sancho Pança, atentemos agora, mais explicitamente, na observação de que a narrativa pouco a pouco se orienta no sentido de alcançar, no mesmo espírito de burla, tanto as obras de cavalaria quanto as novelas pastoris" (Josué Montello).

Cervantes, no fundo – e esse é o seu drama –, não queria ser Cervantes, mas Lope de Vega: é evidente e inegável o seu despeito de ficcionista infeliz e ignorado contra comediógrafo de sucesso, com quem tentou também canhestramente rivalizar, o que é significativo. As novelas de cavalaria, contra as quais a crítica supos que Cervantes escrevia, já haviam desaparecido há cerca de duzentos anos: não havia mais motivo para tentar ridicularizá-las. Aparecendo em 1605, o Quixote foi a épica burlesca, mas nostálgica, do império perdido, assim como Os Lusíadas haviam sido, em 1572, a épica heroica do império que se desintegrava.