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Uma luta bíblica. Essa é a percepção que se tem do debate sobre direito autoral na música brasileira hoje. Para uns, o lado do bem teria o Creative Commons (CC), organização que defende formas de facilitar a circulação de cultura, numa mítica peleja contra o mal, personificado na indústria que processa quem compartilha música na internet em programas como eMule. Mas há quem enxergue o contrário, os demônios estariam representados pelo CC, que tenta convencer que música deve ser gratuita para, assim, usurpar os direitos dos compositores — os anjos dessa versão da história.

A questão — cada vez mais quente, como mostra a série de palestras "Piratas da cultura", em cartaz no CCBB do Rio de Janeiro, e os recentes debates do "Música Chappa Quente", além do festival "Criei, tive como", até sábado em Porto Alegre insiste em ser mais complexa que as teorias de Batalha do Juízo Final. Representantes da Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD) e do Creative Commons — vistos como inimigos históricos, sobretudo pelas divergências sobre a decisão da primeira de mover os processos contra usuários de P2P — tiveram na semana passada um amistoso encontro no "Música Chappa Quente". E os dois lados estão ainda mais próximos do que pode parecer. O CC e a Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI) — da qual fazem parte a ABPD, o Ecad e grandes empresas como Itaú e Souza Cruz — estão estudando uma alteração na Lei de Direitos Autorais. A proposta será apresentada nos próximos dias.

— Vamos sugerir uma mudança na redação do artigo 46, que trata do que não é ofensa aos direitos autorais, ou seja, o que é permitido — explica Ronaldo Lemos, coordenador do Creative Commons no Brasil. — A ABPI já tinha uma proposta de texto, que nós apoiamos inicialmente. Mas ela era muito vaga e, apesar de carregar uma mudança de intenção, dava muita margem à interpretação do juiz. Desta vez, vamos expor claramente o que pode e o que não pode, seguindo o mesmo espírito da lei em vigor.

Uma das alterações propostas no texto, que será encaminhado ao Congresso, é a de que seja permitida a cópia para iPod (ou qualquer MP3 player) de um CD comprado legalmente. Algo que a legislação atual não permite.

O Creative Commons anuncia outro projeto que promete ser um avanço na sua forma de trabalhar. O grupo estuda um sistema para que o artista deixe claro quanto deve pagar (e como) o interessado em fazer uso comercial de sua obra — como pôr uma música num filme, por exemplo. Hoje, para isso, é necessário que se entre em contato com o autor.

— Mais de 150 milhões de obras são licenciadas pelo Creative Commons hoje, a maioria delas para uso não-comercial. No novo sistema, a licença diria que a obra está liberada sob tais e tais condições e haveria um link do tipo "para uso comercial clique aqui". Entraria então uma tabela, com os valores a serem pagos e a forma como o pagamento seria feito — adianta Lemos, ressaltando que o dinheiro não passaria pelo Creative Commons. — É uma forma de facilitar a comunicação entre o artista e o interessado em sua obra.

Paulo Rosa, presidente da ABPD, vê o pensamento do CC com cautela, mas não condena seus princípios.

— Considero as idéias de Lawrence Lessig (professor da Universidade de Stanford idealizador do CC), uma utopia, onde tudo que é criado deve imediatamente ser propriedade coletiva. Uma espécie de "comunismo cultural" que não sobrevive no mundo real e nas economias de mercado — acredita Rosa, que pondera: — O direito autoral na era digital deve ser discutido de forma realista e prática, dentro da ótica de que todos seus titulares devem ser remunerados pela utilização de conteúdo musical. Não há, entretanto, nada contra quem por livre e espontânea vontade decide disponibilizar sua obra através de qualquer sistema de licenças online.

Os projetos e teorias do Creative Commons, no entanto, são vistos com desconfiança por muitos artistas.

— Creative Commons é um engodo. Não acredito em ajuda desinteressada vinda de Stanford — ironiza o compositor Fernando Brant, presidente da União Brasileira dos Compositores (UBC), referindo-se ao idealizador do CC, o professor americano Lawrence Lessig. — Eles defendem que a música deve ser de graça, que o BNegão (rapper que licencia sua obra pelo CC) vai ganhar dinheiro com os shows. Mas o autor não faz show!

A advogada Deborah Sztajnberg, que trabalha com direito autoral há 17 anos e hoje é conselheira da Comissão de Direito Autoral e Entretenimento da OAB-RJ, também questiona as idéias do grupo:

— É muita espuma em pouca água. O Creative Commons não traz novidade nenhuma, pois hoje o autor tem o direito de liberar sua obra, basta que se peça autorização a ele — argumenta. — Na verdade, o grupo faz um desserviço ao dar a idéia de que os direitos autorais estão ultrapassados, o que dá margem para muito salafrário pintar e bondar.

O Ministério da Cultura apóia abertamente o Creative Commons e o ministro Gilberto Gil licenciou seu disco "O sol de Oslo" pelo CC. Freqüentemente, ele expõe seus argumentos em discursos:

— Como artista, sei da importância do respeito aos direitos de autor. Mas também aprendi que o processo criativo alimenta-se de fontes terceiras. O acesso desimpedido a tais fontes é também indispensável para a vida e sobrevivência do artista — disse em 2006.

As intenções de Gil, porém, costumam ser questionadas pelos críticos do Creative Commons.

— Gil tem lembrado Thomas Jefferson para dizer que as idéias devem ser livres — diz Brant. — Pois ele faz como Jefferson, que foi contra a escravidão e tinha mais de 200 escravos. Por que ele liberou apenas um disco pouco importante, e não sua obra toda.

Outra questão que causa polêmica é o tempo de validade dos direitos autorais. Hoje, no Brasil, é de 70 anos após a morte do autor — o país assina acordos na OMC que garantem que uma obra entre em domínio público apenas 50 anos depois do falecimento do artista.

— Esse período nunca diminuiu, sempre aumentou. O que defendemos é que a partir de agora nenhuma mudança, para cima ou para baixo, seja feita sem um estudo, para saber quem ganha e quem perde. Ela não deve ser feita por ideologia — diz Lemos. — Uma alternativa que poderia ser estudada é a sugestão de um economista americano de que os direitos autorais poderiam ser eternos, desde que os autores ou seus herdeiros periodicamente reafirmassem que querem continuar explorando as obras e pagassem uma tarifa de, por exemplo, R$ 0,50. A proposta nasceu quando se percebeu que a maioria das obras protegidas são "órfãs".

Glória Braga, superintendente executiva do Ecad, discorda:

— O argumento para diminuir o prazo é de que as músicas iriam mais cedo para o domínio público. Mas isso seria realmente bom para a sociedade? Quem vai proporcionar o acesso dela às obras? Porque enquanto o artista ou os herdeiros recebem, eles se esforçam para que a obra circule. E que bem traz à sociedade poder pôr um chifre no Mickey? — pergunta, citando o caso símbolo da Disney, que consegue prorrogar seus direitos sobre o desenho indefinidamente.

A pirataria, claro, está na pauta da discussão, cada vez mais — anteontem, a ABPD e a Motion Picture Association (MPA) anunciaram a criação da Associação Antipirataria Cinema e Música. Para muitos, o Creative Commons está associado à prática por seu posicionamento contra os "piratas da internet".

— O Creative Commons não é a favor da pirataria, de forma nenhuma. Com relação aos processos, fomos contra porque eles não funcionaram nos Estados Unidos, o efeito coibidor foi irrelevante. E no Brasil um processo desses é drástico. É quase o próprio castigo, pois quem perde paga os honorários do vencedor — diz Lemos. — E o termo pirataria, do ponto de vista jurídico, não representa nada. É um termo político. Será que não vem sendo usado para obscurecer o debate? É como a campanha das editoras que diz que copiar livro é crime, quando na verdade o artigo 46 permite a cópia em certas circunstâncias.

Lemos aposta ainda que a discussão sobre downloads em breve ficará caduca:

— Estamos assistindo ao início do fim das redes P2P. Hoje, em vez de baixar uma música para conhecer, muita gente prefere entrar no Youtube ou nas rádios online. É mais rápido, não ocupa espaço no seu HD. Em breve, será lançado nos Estados Unidos o Slacker, um player que não armazena músicas, toca via satélite direto de um banco de dados gigantesco. O futuro vai por aí.

Recentemente, o presidente da ABPD declarou que o compartilhamento de arquivos tem dado prejuízos enormes à indústria (ela era de US$ 1 bilhão em 1996 e hoje é de US$ 250 milhões) e que o objetivo das ações é chamar a atenção para o problema, dizer "tem algo aí que não está certo". Retomando o argumento, ele dá sua visão da questão:

— Quando há acordo, a média do que os infratores têm pago é algo entre US$ 2 mil e US$ 3 mil. Nenhum dos processos em mais de 30 países já chegou ao fim, quando caso o uploader (quem disponibiliza música) seja condenado, deverá pagar a indenização fixada pela justiça, que dependendo do caso e da quantidade de músicas disponibilizadas ilegalmente, pode chegar a um valor significativo. É mais negócio fazer um acordo e começar a consumir música de forma legal, em minha opinião.

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