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Soldados durante a Revolta da Armada: o personagem Policarpo juntou-se às forças que defendiam Floriano Peixoto | Divulgação
Soldados durante a Revolta da Armada: o personagem Policarpo juntou-se às forças que defendiam Floriano Peixoto| Foto: Divulgação

"E ele se lembrava que há bem cem anos, ali, naquele mesmo lugar onde estava, talvez naquela mesma prisão, homens generosos e ilustres estiveram presos por quererem melhorar o estado de coisas de seu tempo. Talvez só tivessem pensado, mas sofreram pelo seu pensamento. Tinha havido vantagem? As condições gerais tinham melhorado? Aparentemente sim; mas, bem examinado, não."

O parágrafo acima é um recorte do último capítulo de Triste Fim de Policarpo Quaresma, obra-prima de Lima Barreto, que começou a ser publicada em folhetins no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, em agosto de 1911; há exatos cem anos, portanto. O trecho faz pensar sobre o Brasil dos dias atuais com aquele do período retratado no romance – fim do século 19, durante o governo do marechal Floriano Peixoto. As coisas melhoraram? Essa é a pergunta inescapável que atinge o leitor; e é também prova de como o escritor carioca criou um enredo atemporal. "[Policarpo] nos faz mergulhar no passado para ali reencontrar o presente", escreveu a doutora em Letras Carmen Lydia de Souza Dias na versão lançada pela editora Ática em 2006.

Clássico da literatura em língua portuguesa, o livro acompanha a trajetória do personagem-título, uma espécie de dom Quixote nacional. Em vez de moinhos de vento, no entanto, o major Quaresma, imerso num patriotismo exagerado e ingênuo, decide combater aquilo que considera influências externas a corroer a pureza da identidade brasileira. O protagonista tem uma certeza: sob qualquer aspecto positivo, o Brasil seria "o primeiro país do mundo". Como descreve Barreto: "Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente".

O espírito ufanista do herói acaba sendo esmagado, pouco a pouco, pelas mazelas do país que tanto adora. Ao sugerir que o tupi-guarani substituísse o "importado" português, é tido como louco e internado num hospício. Quando se lança no empreendimento rural do sítio Sossego, pragas agrícolas derrubam seu sonho de colher os frutos dos "terrenos mais férteis do mundo". Suas ideias para uma reforma agrária são solenemente ignoradas pelo marechal Floriano, com quem tem uma audiência. Durante a Revolta da Armada, após lutar do lado das forças governistas, é preso como traidor por denunciar os maus-tratos aplicados aos soldados vencidos.

Em A Vida de Lima Barreto, o biógrafo Francisco de Assis Barbosa conta que o escritor escrevera Triste Fim de Policarpo Quaresma em apenas três meses, no início de 1911. Para o professor do departamento de Letras da UFPR e especialista na obra de Lima Barreto Benito Martinez Rodriguez é inegável que o autor descreve ali muito de seu próprio tempo, quase duas décadas à frente dos episódios do romance. "Se a lógica da acomodação dos interesses dos grupos de mando feita ‘pelo alto’, assim como a prática de controlar os grupos descontentes de baixo pela força não saíram de cena ao longo de nossa história, não é difícil compreender que os leitores de hoje possam reconhecer certa atualidade em Policarpo Quaresma", completa.

Apesar de o nacionalismo extremado ser um dos principais temas ironizados no livro, Barreto usa seu texto para tratar também de questões sociais – em personagens como o general Albernaz, o "doutor" Genelício e o trovador Ricardo Coração dos Outros, é possível enxergar a oligarquia civil e a elite militar diante dos dramas do povo e da vida no subúrbio carioca; em Olga e Ismênia, vê-se a crítica às limitações do papel feminino na sociedade, que estabelecia o casamento como objetivo maior imposto às mulheres; Anastácio representa o deslocamento dos ex-escravos nos anos que se seguiram à abolição. Com tudo isso, de acordo com o biógrafo Assis Barbosa, o escritor ainda encontrava espaço para inserir no enredo traços autobiográficos, o mais evidente deles sendo o medo da loucura, que acometera seu pai e também viria a lhe castigar (leia mais no texto ao lado).

Comédia trágica

Talvez um dos aspectos mais marcantes na trajetória do protagonista seja a sua transformação de personagem patético, nos capítulos iniciais, no herói trágico do desfecho. Rodriguez enfatiza que Machado de Assis já havia usado esse recurso narrativo em suas obras; e Barreto o toma com maestria. "A obra de Lima Barreto não é uma celebração, por contraste, de uma nação ‘perdida’, e sim um chamamento à compreensão de sua história e à construção de algo novo", frisa o professor.

Para Rodriguez, no entanto, a crítica ao ufanismo de Policarpo Quaresma não deve ser transposta ao pé da letra para toda e qualquer exaltação nacional. "A generalização do acesso ao letramento, a discreta redistribuição de renda, esboços de uma reforma agrária, a expansão de direitos e a articulação de setores populares" são citados por ele como exemplos de avanços – lentos e tardios – que renovariam o sentido do encerramento do romance. Nele, Olga, afilhada de Policarpo, após frustrar-se na tentativa de salvar o padrinho condenado ao fuzilamento, examina a paisagem ao redor e conclui que podemos "esperar mais" do nosso país.

Serviço

Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Penguin/Companhia das Letras, 365 págs., R$ 25.

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