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Caricatura de Lima Barreto, feita por Hugo Pires em 1919 | Reprodução
Caricatura de Lima Barreto, feita por Hugo Pires em 1919| Foto: Reprodução

Toda a obra de Lima Barreto diz respeito ao homem que ele foi. Mas Recordações do Escrivão Isaías Caminha talvez seja o livro no qual o autor carioca mais conseguiu traduzir, por meio da ficção, suas experiências pessoais, angústias e frustrações. O romance, lançado em 1909, dois anos antes de Triste Fim de Policarpo Quaresma , ganhou recentemente uma edição caprichada da Penguin/Companhia das Letras, com prefácio do historiador Francisco de Assis Barbosa, que fez um estudo sobre o autor, contextualizando o livro à época em que foi publicado.

Mulato, pobre e alcoólatra, o escritor viveu na pele as dores de ser um cidadão de segunda categoria. Embora fosse inteligente e culto, algo pouco comum entre pessoas de sua classe social à época, Barreto viu muitas portas se fecharem por causa de sua origem, da cor de sua pele: era considerado uma afronta que alguém como ele ousasse ocupar um lugar de prestígio entre os intelectuais e os literatos da nação.

O personagem-título do romance é também o narrador da história. Por meio de Isaías, acredita-se, Barreto se fez ouvir, descrevendo tanto seu cotidiano de jornalista suburbano, sem dinheiro e idealista, quanto revelando suas aspirações, desejos e crenças. O rumo inevitável dessa trajetória é o desencanto, pautada pelo esforço inócuo e pela falta de perspectivas.

Isaías se apresenta no início do livro como um jovem promissor, de conduta exemplar enquanto era estudante, muito por conta da formação sólida recebida na escola e também do exemplo recebido dos pais – aqui é importante ressaltar uma informação essencial para a compreensão da complexidade que marca o protagonista: sua mãe, uma bela mulata generosa e humilde, engravidou de um sacerdote, um homem sábio e presente na vida de Isaías.

A convicção de que tem as qualidades necessárias para ser alguém na vida fazem com que o rapazote parta do interior para a cidade do Rio de Janeiro, levando na bagagem a promessa de que será ajudado por um certo deputado. Deseja estudar Medicina, sonha tornar-se "doutor".

Ao chegar à capital do país, Isaías nunca consegue falar com o tal político que o ajudaria e acaba indo trabalhar em um grande jornal da cidade. O cotidiano na redação se torna o foco principal da narrativa.

Estilo realista-memorialista

Em História Concisa da Literatura Brasileira, o crítico paulista Alfredo Bosi, integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL), descarta a hipótese, levantada por muitos, de que Recordações do Escrivão Isaías Caminha seja um romance autobiográfico. Afirma, no entanto, que o personagem-título representa "a própria frustração do autor, que nele se encarna, tornando especialmente doídos os seus encontros com os preconceitos de cor e de classe". Bosi acrescenta que, por meio de seu estilo realista-memorialista, Barreto constrói uma narrativa na qual a sociedade brasileira do início do seculo 20 é descrita como cruel e classista, e Isaías é retratado como um "humilhado e ofendido".

O crítico gaúcho e também integrante da ABL Carlos Nejar, em História da Literatura Brasileira – da Carta de Pero Vaz de Caminha à Contemporaneidade, descreve Barreto como um "ficcionista de gênio, rebelde, desprezado, arrostando a incompreensão de sua época", alguém que "sabia como poucos entender a alma dos marginalizados, os esquecidos da sociedade, os párias".

Ao falar do engodo que teria sido a existência de Isaías Caminha, Nejar chama o livro de Barreto, em referência ao clássico de Machado de Assis narrado por um homem morto, de um "Memórias Póstumas de Brás Cubas às avessas, para não dizer, em certo sentido, parodiada". E cita um trecho do romance, no qual, em tom desiludido, o protagonista-narrador se diminui: "A má vontade geral, a excomunhão dos outros tinham-me amendrontado, atemorizado, feito adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e de força. Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas, e não obedecera ao seu império".

Serviço

Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Penguin/Companhia das Letras, 312 págs., R$ 26,50.

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