| Foto: Ilustração: Robson Vilalba

Nas telas

Vários filmes e documentários tratam da Sagração da Primavera e do contexo em que a obra foi criada. Saiba mais a seguir:

Nijinski – Uma História Real - (Nijinski. Estados Unidos, 1980). Direção de Herbert Ross. Com Alan Bates, George De La Pena e Leslie Browne.Filme britânico de 1980, dirigido por Herbert Ross, focado na relação entre o bailarino e Diaghilev.

Riot at the Rite - (Reino Unido, 2005). Direção de Andy Wilson. Com Adam Garcia, Alex Jennings e Aidan McArdle.Documentário da BBC que reconstitui dramaticamente a estreia da Sagração. Assista em www.youtube.com/watch?v=TXmdR7p0rI4

Coco Chanel & Igor Stravinski - (França/Japão/Suíça, 2009). Direção de Jan Kounen. Com Anna Mouglalis, Mads Mikkelsen e Elena Morozova.O filme de Jan Kounen resgata o caso de amor entre a estilista francesa e o compositor russo da Sagração.

Paris: the Luminous Years –Toward the Making of the Modern - (Estados Unidos, 2010). Direção de Perry Miller Adato. Documentário do canal público norte-ame­ricano PBS que explora o momento cultural único vivido em Paris de 1905 a 1930.

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A escritora americana Gertrude Stein, 39 anos em 1913, dez de Paris, descreveu a noite da Sagração em A Autobiografia de Alice B. Toklas, publicada em 1933: "Bem defronte ao nosso camarote estava Guillaume Apollinaire. Vestia traje a rigor e beijava industriosamente a mão de várias senhoras de aparência importante. O espetáculo mal havia começado quando a agitação teve início. O cenário com seu telão de fundo colorido que hoje não causa mais espanto ultrajou a plateia parisiense. Vieram então a música e a dança e muita gente começou a assobiar. Os defensores responderam com aplausos. Não podíamos ouvir nada, na verdade, nunca ouvi a maior parte da música da Sagração da Primavera porque foi a única vez que assisti a ela e era impossível, ao longo de todo o espetáculo, ouvir o som da música."

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O escritor Marcel Proust, 42 anos, estava na plateia. Naquele mesmo ano ele publicaria do próprio bolso o primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido. Pouco depois da estreia da Sagração, ele escreveu premonitoriamente para Gabriel Astruc, que havia inaugurado o teatro na Avenue Montaigne poucos meses antes: "As dificuldades que você enfrentou certamente darão à obra um lugar na história da arte, muito mais do que se houvesse alcançado sucesso imediato." O poeta Jean Cocteau, 23 anos, escreveu: "O barulho era como o de uma batalha. De pé no seu camarote, sua tiara quase caindo da cabeça, a venerável Condessa de Pourtalès brandia seu leque e gritava, apoplética, o rosto arroxeado. ‘É a primeira vez em sessenta anos que alguém ousa zombar de mim.’ A velha senhora falava sério. Achava que tudo aquilo não passava de um grande embuste."

Pablo Picasso, longamente associado com os balés de Diaghilev (casou-se pela primeira vez em 1918 com a bailarina do grupo, Olga Khokhlova), é mostrado em um documentário recente da BBC sobre a noite de 29 de maio de 1913 calmamente desenhando galinhas num caderninho enquanto o mundo explode ao seu redor.

O crítico Pierre Laloy descreveu com verve: "Eu estava logo abaixo de um camarote de pessoas elegantes e charmosas cujas observações jocosas e alegres cacarejos, comentários espirituosos emitidos em voz alta, enfim, cujos risos convulsivos e agudos formavam uma barragem comparável àquela que nos ensurdece quando entramos num viveiros de pássaros. Mas eu tinha à minha esquerda um grupo de estetas em cuja alma A Sagração da Primavera suscitava um entusiasmo frenético, uma espécie de delírio jaculatório e que rebatia sem cessar os ocupantes do camarote com interjeições de admiração, com ‘bravos’ furibundos e pelo fogo abrasivo de suas palmas; um deles, dotado de uma voz parecida à de um cavalo, relinchava de tempos em tempos sem se dirigir a ninguém em particular um ‘À sa-í-daaa !’ cujas vibrações dilacerantes se prolongavam por toda a sala."

Terremoto

A artista Valentine Gross Hugo relatou: "Era como se o teatro tivesse sido atingido por um terremoto. Ele parecia balançar em meio ao tumulto. Gritos, insultos, apupos, assobios prolongados abafavam a música e então palmas e até vaias. Com a música inaudível, um Nijinski muito pálido nos bastidores gritava o ritmo dos passos para os bailarinos, enquanto em seu camarote Sergei Diaghilev, o diretor dos Ballets Russes, tentava dar ordens acima do alarido."

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A aristocrata e intele­ctual inglesa Ottoline Morrell – condigna moradora de um castelo tipo Downton Abbey e mecenas dos Ballets Russes – também estava presente à estreia e salientou o lado superstar de Nijinski. Ela observou que, gigante no palco, Nijinski era o oposto fora dele: ingênuo, tímido, fugidio, quase vazio. Tudo podia ser – e era – projetado sobre ele, incluindo "fábulas fantásticas de que era muito depravado, que um marajá indiano lhe havia presenteado espartilhos de esmeraldas e diamantes. Durante suas apresentações, as pessoas invadiam seu camarim para roubar suas cuecas."

Maurice Ravel, que tinha trabalhado com Stravinski durante a orquestração do balé na Suíça, resumiu tudo numa palavra: "Gênio!"

A consagração da Sagração

O maestro e compositor Leonard Bernstein caracterizou A Sagração da Primavera como "simplesmente uma de nossas obras-primas vulcânicas (...) uma miraculosa criação nova de tal originalidade e força que ainda hoje nos choca e nos surpreende."

Esa-Pekka Salonen, regente e compositor finlandês, definiu: "A Sagração veio do nada e mudou tudo. Não há desenvolvimento, ou forma sinfônica, como numa sinfonia de Mahler ou de Brahms. Muitas obras de destaque escritas na década de 1910 e 20 estão praticamente esquecidas; quando falamos sobre elas, temos respeito e as reverenciamos, mas não são o tipo de música de que sentimos falta quando ouvimos."

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O poeta T. S. Eliot assistiu a uma das apresentações da Sagração em Londres em 1921. Segundo o estudioso de sua obra, Robert Crawford, "considerando os vários elementos presentes no pensamento de Eliot [estava imerso na etnografia contemporânea], não chega a ser surpreendente que ele encontrasse nos tímpanos tonitruantes da Sagração o equivalente do mito que procurava. Assistindo ao balé, Eliot procurou usar a ponta de um guarda-chuva a fim de impedir os risos de seus vizinhos de plateia. O guarda-chuva fechado do homem da cidade podia facilmente se tornar uma lança. Para Eliot, a peça de Stravinski unia o urbano e o selvagem, parecendo ‘transformar o ritmo das estepes no grito da buzina do automóvel, no matraquear do motor, no ranger das rodas, no entrechoque de ferro e aço, no ronco da ferrovia subterrânea e os outros gritos bárbaros da vida moderna; e transformar estas notas desesperadoras em música.’ Não é uma reação comum à peça, mas o desesperado Eliot usava a música de Stravinski para sustentar seus próprios esforços da criação de The Waste Land/A Terra Desolada."

Em sua impecável História da Música, publicada em 1958, Otto Maria Carpeaux resume: "A Sagração continua entusiasmando todas as novas gerações que a ouvem pela primeira vez. Continua obra difícil, perigosa, experimental até hoje. O furioso movimento polirrítmico das danças, as dissonâncias ásperas da escritua extremamente cromática e politonal parecem-lhes o retrato musical dos tempos novos, da nossa época das máquinas. Quase já não se percebe que a obra foi concebida como evocação dos tempos bárbaros da Rússia pré-cris­tã e pré-eslava, dos citas; que é uma obra de primitivismo produzida com os recursos do mais requintado intelectualismo. Parece ligada ao espírito de 1913 que, às vésperas das grandes catástrofes, as pressentiu sem ainda temê-las, por falta de experiência."