Apófelis Caldus, o erudito professor, falava diante de uma plateia inquieta e atenta:
Sempre achei injusto o modo como são referidos os animais nas fábulas, disse ele, disparando olhares laterais que mostravam sua contrariedade. Não raro são apresentados como inúteis, nada inteligentes, trapalhões, Não há defeito que não possa ser representado por um animal. Os homens sofrem com seus próprios defeitos e os atribuem aos animais. Eles é que seriam preguiçosos, vadios. Estão aqui os gatos e os cachorros que não me deixam mentir!
Apófelis, é claro, é uma tartaruga sapientíssima. De idade indefinida, mas avantajada, tem um ar cansado de tartaruga, mas, se lhe dão a palavra, é capaz de discursar durante horas com habilidade e entusiasmo.
A sua frente está uma audiência não menos importante. Coelhos, ratos, jacarés, jumentos, cavalos, abelhas, mosquitos. Acotovelados ao longo da clareira, ouvem com atenção e, a cada frase de Apófelis, fazem comentários ruidosos.
Vejam que continuou o orador tudo quanto for de qualidade ruim as fábulas humanas transferem para um animal. Por exemplo...
O burro, Trancado Távora de batismo, sentado na segunda fila, cutucou o cachorro a seu lado e comentou:
Vai sobrar pra mim.
O cachorro sorriu. Apófelis continuou, como se não tivesse ouvido o comentário:
Vejam o caso do burro.
Não disse? e Trancado Távora suspirou resignado.
O burro Apófelis espichou o pescoço enrugado e velho tem sido um injustiçado, tanto que seu nome, burro, passou para a linguagem corrente como sinônimo de pouco inteligente ou mesmo de nada inteligente. Um zero à esquerda. Nada mais injusto. Um burro pode ser tão inteligente quanto a mais sábia das tartarugas!
Os aplausos foram entusiásticos, pois a turma gosta de retórica. Aproveitando o tumulto, o gorila deu um soco amigável cerca de 300HP de força bruta nas costas do burro e comemorou:
Esse Apófelis sabe mesmo falar bonito! Te livrou a cara, Trancado!
O burro esparramou-se no chão com a pancada.
Gostaria de finalizar... continuou Apófelis, batendo as patinhas pedindo silêncio.
Mas não finalizou. Ao menos não naquele momento e não com o golpe retórico que desejava. É que se levantou na plateia o gambá, abrindo uma clareira de uns dez metros devido à fedentina miserável que é capaz de espalhar.
Questão de ordem! pediu o gambá.
Houve certo tumulto, pois ninguém se atrevera, em todos aqueles anos, a interromper os discursos de Apófelis, a tartaruga sábia.
Pois não, disse educadamente Apófelis. Vamos ouvir Miosótis.
Miosótis, isso mesmo, Miosótis Flores, nome pelo qual era conhecido o gambá em questão. Como é próprio dos gambás, façam ou não parte de fábulas humanas, ele deu uma baforada de maus bofes, empestou os ares em volta e mandou:
Apófelis defende o burro, mas não defende o gambá. Apófelis procede mal. Talvez esteja agindo como aqueles a quem deseja criticar.
Pela frase se via que Miosótis Flores também conhecia alguns truques de retórica. A plateia emudeceu, a foca deixou de buzinar, a borboleta silenciou suas asas, pois mesmo elas seriam ouvidas no silêncio que tomou conta da clareira. Apenas o gorila, passados alguns segundos, se manifestou, batucando no peito, eufórico:
Vai pegar fogo! Agora é que eu quero ver!
E disse Miosótis Flores:
Há até mesmo fábulas nas quais burros são heróis e tartarugas são inteligentes.
A gargalhada foi geral, inclusive por parte de Apófelis, que, tendo humor, jamais perde a linha.
Eu quero ver é uma fábula em que o gambá não seja fedido, desafiou Miosótis.
O silêncio tornou-se constrangedor. Aflito, o leãozinho Mimoso de apelido berrou lá da primeira fila, querendo apaziguar os ânimos:
Calma, gente, somos todos iguais. Todos os animais foram feitos à imagem e semelhança de meu pai.
Foi quando, esquecida a retórica, a pancadaria se generalizou.
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