“Será uma quinta-feira de um mês ímpar de um ano bissexto.” Mentira: o mês não será ímpar nem o ano, bissexto. Mas será numa quinta-feira. Achei que deveria começar este texto com uma frase impactante de “Histórias de Cronópios e de Famas”, livro de Julio Cortázar que, em certo sentido, me trouxe a Buenos Aires (numa quinta-feira, é claro). Eu tinha 19 ou 20 anos quando o li pela primeira vez e pensava, como o cronópio do título, o quão maravilhoso seria cortar a pata de uma aranha, metê-la num envelope endereçado ao Senhor Ministro das Relações Exteriores e descer a escada aos pulos para botar a carta no correio da esquina.
Fechar nosso apartamento em Curitiba e partir para uma aventura portenha sem data de volta também seria, à sua maneira, uma “ocupação maravilhosa”. Porque, afinal, é preciso ser meio tantã para trocar um país em crise, como o Brasil, por outro em crise permanente, como a Argentina.
Escolhemos — meu marido e eu — fazer a viagem em dois tempos, pelo ar e por terra. Um voo promocional até a tríplice fronteira encurtaria o caminho e ainda permitiria dar um abraço de despedida numa parte da família. Descobrimos que seria possível e até mesmo barato despachar 20 quilos — roupas, uma cafeteira de estimação e muitos livros — por uma empresa de entregas, evitando pagar excesso de bagagem no aeroporto. Aí, de Foz do Iguaçu seriam cerca de 20 horas de ônibus leito mirando os cenários da janela feito cinema, a 24 quadros por quilômetro, o Rio Paraná serpenteando o território até escoar, como nós, no estuário do Prata. Gosto de chegar de mansinho, ruminando os pensamentos e anotando as ideias em letra miúda tremida pelos solavancos. Mas é preciso ter escutado muito Lô Borges para apreciar a poética da estrada, para saber que no hay camino, se hace camino al andar.
A curitibana Mariana Sanchez nasceu no coração do Campina do Siqueira, no veranico de maio de 1981. É jornalista com especialização em cinema e tradução. Entre os autores que verteu ao português, para editoras como Alfaguara, Arte e Letra e E-galáxia, estão Lina Meruane, Samanta Schweblin, Fabián Casas e Selva Almada.
Há exatos dez anos, quando percorri quase todos os países da América do Sul durante cem dias, levantando o dedo no acostamento e dormindo nas camas mais xexelentas do continente na companhia de um amigo também jornalista, fiz-me PhD no assunto. Aquele, aliás, foi o ano em que (re)conheci Buenos Aires, cidade mítica que eu já amava desde muito antes, literariamente. O parque Lezama, onde o Martín de “Sobre Heróis e Tumbas” encontra sua amada Alejandra, na pena de Ernesto Sábado; a calle Garay, endereço de um certo porão onde se pode ver o Aleph de Jorge Luis Borges; a confitería Richmond, hoje convertida numa loja da Nike, em cuja mesa um cronópio de outrora molhava uma torrada com suas lágrimas naturais.
Desde que passei a me dedicar também à tradução literária, sobretudo de autores argentinos, o desejo de morar uma temporada na margem direita do Rio da Prata só fez aumentar. Vivenciar o idioma na carne, com toda sua música e seus matizes, faz um bem danado a um tradutor. Exemplo: lembro que certa vez tive de explicar o termo sudestada na nota de rodapé de uma tradução. Ao ser recebida em Buenos Aires com temporal e ventos de 60 km/h, no início de agosto, aprendi empiricamente seu significado. E pensar que, enquanto isso, o veranico rolava solto no parque Barigui. Mas não por muito tempo: na semana seguinte o tempo já virou aí, nessas plagas, comprovando que a tal “frente fria vinda da Argentina” não tarda, nem falha. (Vamos deixar claro que minha ideia, ao vir para cá, era antecipar as novidades literárias portenhas, não necessariamente a meteorologia curitibana.)
Embeber-nos da cultura local — e de malbec argentino, por supuesto — foram boas desculpas para nos mudarmos para Buenos Aires. Embora, fazendo agora uma autoanálise, havia outros motivos em jogo. E o maior deles era nos desvencilharmos da zona de conforto que Curitiba, feito uma redoma, promove aos seus habitantes. Tinha mais: viver um tempo na minha cidade do coração talvez me fizesse voltar a amar a terra natal. Não só amar, mas compreender.
Iniciamos o projeto “Um ano em Buenos Aires” colocando à venda nosso carro, bem inútil para quem viveria numa cidade com metrô. Convidar um amigo para morar em nosso apartamento sem pagar aluguel também foi providencial. Além de nos livrarmos do condomínio e da conta da Copel, que andava uma fortuna, teríamos alguém para cuidar da nossa mascote felina, a verdadeira proprietária do imóvel. Hoje em dia não é tão complicado transportar um pet a outro país, já que se pode levá-lo dentro do avião. Mas nós não iríamos de avião. E jamais importunaríamos uma gata idosa e caprichosa com férias forçadas que a tirariam do seu habitat natural.
Preparar as malas foi outro desafio. O que vai, o que fica? Quantos pares de meia são necessários ao longo de um ano? E a biblioteca, vai ou racha? Rachamos: uma parte doada, outra vendida, uma terceira encaixotada e uns poucos títulos trazidos na mochila. Tudo parecia pronto para partirmos. Mas quem disse que Curitiba nos deixava ir embora? Em nossa última semana, uma série de imprevistos e entraves foram surgindo, colocando-nos à prova. A cidade onde vivi desde sempre, entre o Campina do Siqueira e o Cristo Rei, não me permitia arredar o pé, como se estivéssemos naquele filme do Buñuel, “O Anjo Exterminador”. Mas os obstáculos tinham de ser vencidos, assim como os medos que toda grande mudança suscita. Clientes, não nos esqueçam; família, não morra; amigos, mandem notícias.
Pela internet, arranjamos um apartamentinho mobiliado no bairro de San Telmo, onde colamos na parede um mapa de Buenos Aires. Estamos na zona sul da cidade, a passos do lugar onde, supostamente, Pedro de Mendoza teria fundado o porto de Nuestra Señora Santa María del Buen Ayre em 1536. Gosto da ideia de estarmos ao sul do sul do continente, no ponto onde tudo começou nesta cidade onde nós, também, estamos recomeçando.
Procurar nossa próxima morada — já que a primeira seria só para o primeiro mês — tem nos obrigado a palmilhar a cidade toda e descobrir que o mapa nunca é o território. Em breve, quem sabe, poderei versejar como Leminski sobre Curitiba: “Conheço esta cidade como a palma da minha pica”. Mas ainda não. Posso dizer, pelo menos, que já conheço profundamente a rua onde moro, a mesma calle Garay do Aleph borgiano, à altura da Defensa: o açougueiro paraguaio que me garante que a carne, aqui, é melhor do que no Brasil; o rapaz da quitanda, que me vende salsinha (ou melhor, perejil) enquanto confessa o sonho de morar no Rio de Janeiro — e me diz que é impossível achar couve em Buenos Aires, inviabilizando meu suco verde matinal.
Do sexto andar do nosso apê de 28 metros quadrados, aprendemos dois verbos novos: balconear e matear. É incrível tudo o que se pode aprender sobre uma cidade tomando mate e observando da sacada seus movimentos. No entanto, estamos aqui há duas semanas e ainda não vimos o Rio da Prata. Se você não vai a Puerto Madero, o bairro revitalizado na década de 90, não o verá nunca, já que Buenos Aires, cidade monumental e orgulhosa de sua arquitetura neoclássica europeia, dá as costas para o rio, isolando-o na paisagem.
De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas.
A vida nesta metrópole de 3 milhões de almas é pulsante e tudo acontece do lado de fora. A julgar pelo tamanho das cozinhas que conheci, ninguém prepara comida em casa: do desjejum ao jantar, tudo se dá na mesa do bar. Uma paulista que viveu anos aqui arrisca um palpite: a moeda nacional vale tão pouco que, em vez de poupá-la no banco, é preferível gastá-la de uma vez. Daí a explicação para os cafés, restaurantes, livrarias, cinemas e táxis viverem lotados. 50% da população não tem conta bancária, tudo é pago em espécie, em notas puídas com a cara estampada de Mitre, San Martín e Roca. E é isso que, no fim das contas, faz girar a capenga economia local.
A apropriação que os portenhos fazem do espaço público sempre me atraiu. Se, em Curitiba, os encontros e lazer se dão massivamente em shoppings e lugares privados, aqui há uma vibrante e acessível cena literária, com saraus e eventos gratuitos, sem contar os inúmeros parques, bosques, teatros e a cultura do cinema de rua, que sobrevive — ao passo que, no Brasil, agoniza. Nos espaços INCAA, mantidos pelo Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (espécie de Ancine deles), a entrada custa 8 pesos (pouco mais de R$ 2) e a programação é quase 100% argentina. O problema são as filas quilométricas: há uma semana estamos tentando assistir a “El Clan”, novo filme de Pablo Trapero que, em quatro dias, fez meio milhão de espectadores, superando o fenômeno “Relatos Selvagens”.
Embeber-nos da cultura local — e de malbec argentino, por supuesto — foram boas desculpas para nos mudarmos para Buenos Aires. Embora, fazendo agora uma autoanálise, havia outros motivos em jogo. E o maior deles era nos desvencilharmos da zona de conforto que Curitiba, feito uma redoma, promove aos seus habitantes. Tinha mais: viver um tempo na minha cidade do coração talvez me fizesse voltar a amar a terra natal. Não só amar, mas compreender. “A forma das coisas distingue-se melhor a distância”, dizia o Ítalo Calvino em seu “Cidades Invisíveis”. E também dizia: “de uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas”. Em algum momento da vida é preciso escolher entre ser Marco Polo ou Kublai Khan, e nós escolhemos nos aventurar pelos lugares a ouvir o relato dos outros sobre eles.
No fundo, como escreveu Saramago, “é necessário sair da ilha para ver a ilha”. Daqui, do outro lado do rio que não vemos, podemos divisar uma outra Curitiba, para a qual voltaremos em breve. Ou nem tanto. Quem sabe?
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