O ‘tilintaço’ dos cineastas brasileiros: fora da realidade| Foto: /Reprodução

Presentes à tradicional recepção que a Embaixada do Brasil na Alemanha oferece anualmente aos brasileiros participantes do Berlinale, o Festival de Cinema de Berlim, cineastas brasileiros aproveitaram a ocasião para fazer um protesto político. Segurando taças de champanhe nas mãos, os participantes do movimento pediram a atenção do público presente tilintando os copos de cristal com talheres, à moda dos brindes feitos em casamentos de filmes americanos. A manifestação, ocorrida na última terça (14), foi registrada em um vídeo que circula nas redes sociais e já foi assistido por mais de 30 mil pessoas.

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No vídeo aparecem dezenas de pessoas, entre eles diretores de cinema como Daniela Thomas, Laís Bodanzky, Julia Murat, Cristiane Oliveira e Felipe Bragança. Neste ano, um total expressivo de 12 filmes brasileiros serão exibidos em Berlim, incluindo “Joaquim”, de Marcelo Gomes, que participa da mostra oficial.

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Após obter a atenção do público presente no coquetel, os cineastas avisam que “têm um recado pra dar” e que escreveram uma carta “assinada por muita gente ligada ao cinema no Brasil e no exterior”. A carta é um manifesto da categoria em razão da “grave crise democrática” vivida pelo Brasil em que “direitos de educação, de saúde e trabalhistas foram atingidos”. Trechos do documento são lidos, em um telefone celular, pelos diretores citados acima.

O texto, na verdade, é uma peça de apoio indireto ao atual presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine), Manoel Rangel, que deixará o cargo em maio próximo, após 12 anos conduzindo a entidade. Na carta, os cineastas ressaltam que a atual direção da Ancine “ampliou o alcance dos mecanismos de fomento, que atingem segmentos dos mais diversos”. A manifestação pede a manutenção das políticas públicas de fomento ao cinema nacional e que toda e qualquer mudança seja debatida com antecedência com o setor e “toda a sociedade”.

Esta é a conclusão do manifesto. Em seu início, no trecho lido por Julia Murat, o tom é mais pesado: “Junto com outros setores, o audiovisual brasileiro, especialmente o autoral, corre o risco de acabar”, exagera.

Movimento político

Sonia Braga e a produtora francesa Emilie Lesclaux: protesto em Cannes 

A manifestação retoma um movimento político iniciado pelos realizadores brasileiros desde o protesto da equipe de produção do filme “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, no Festival de Cannes de 2016, acusando o Brasil, na ocasião, de ser vítima de um golpe de estado.

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A polêmica provocada pelo gesto acabou resvalando até na escolha de outro filme – “Pequeno Segredo”, de David Schurmann – como candidato brasileiro ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (no fim, o filme terminou fora da lista de indicados da Academia).

Na visão dos cineastas, as políticas públicas para o audiovisual durante a gestão Rangel à frente da Ancine é que possibilitaram participações recorde do cinema nacional em festivais internacionais como Berlinale, Sundance e Roterdã.

Vídeo é um tiro no pé

Apesar do fomento às artes com recursos advindos de renúncia fiscal do estado ser uma política questionável – ainda que garantida pela legislação –, não se discute o fato de que o cinema nacional depende desse tipo de apoio para manter seus níveis de produção. O que impressiona é o quanto os realizadores foram incapazes de levar o seu discurso para além de seu círculo íntimo. Relembremos: é um manifesto feito em meio a um coquetel na Embaixada do Brasil em Berlim regado a champanhe de qualidade durante a edição de um festival que abriu amplo espaço para a produção brasileira.

Para quem tem grande domínio sobre o uso de imagens e da comunicação, o vídeo divulgado nas redes sociais é um tiro no pé. Soa absolutamente elitista e desconectado da realidade brasileira. Independentemente de seu conteúdo o subtexto é: “estamos afirmando nosso inconformismo com essa situação, mas nem por isso vamos perder a festa”.

Ao se posicionarem contra as políticas do governo Temer, aludem aos protestos que enfraqueceram Dilma no poder: os “panelaços” da classe média nas janelas dos apartamentos. Troque as panelas por taças de champanhe e os bairros de classe média brasileiros por uma das principais metrópoles europeias e pronto: temos o “tilintaço” dos cineastas.

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Ao público que possa se impressionar com o tom de ameaça usado pelos realizadores, cabe avisar: nenhuma mudança de política pública do audiovisual irá extinguir o cinema autoral brasileiro. Recursos podem diminuir, a qualidade técnica pode ser prejudicada, mas o cinema brasileiro sempre resistiu às intempéries financeiras em sua história, seja com o fim da Atlântida, da Embrafilme ou, quem sabe um dia, do financiamento estatal. Afinal, está no DNA do filme nacional: é um cinema que se faz com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça.