Livro
Jazz & Co.
Vinicius de Moraes. Organização de Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 152 págs., R$ 58
O que é jazz? É a pergunta que todo músico e crítico quer calar. Louis Armstrong dizia: "Se você precisa perguntar, então não vai saber nunca." E Fats Waller: "Se não sabe o que é jazz, não perca seu tempo..." Para Vinicius de Moraes, que amou o jazz e escreveu sobre ele: "Jazz, de início, é tudo o que não é Bing Crosby, Frank Sinatra, Doris Day (...) Jazz por outro lado, é qualquer coisa que saia do trompete de Louis Armstrong ou de suas cordas vocais. É qualquer trecho de qualquer peça do criador do boogie, o fabuloso Jimmy Yancey. É a clarineta de George Lewis, é o piano do imortal Jelly Roll Morton, a bateria do telúrico Zutty Singleton. Jazz minha amiga, é justamente esse galo que você ouviu cantar e não sabe onde." Essa definição, ou profissão de fé, está em Jazz & Co., uma coletânea de textos organizada por Eucanaã Ferraz. No complexo universo do crítico de jazz, Vinicius se insere naquela velha guarda que acompanhou as inovações do gênero até os anos 1940 e parou por aí. A partir de uma visão indignada da brutalidade que foi a escravidão negra, ele encampa o modelo marxista de crítica e acaba engessando o objeto de sua análise numa camisa de força ideológica, em detrimento do aspecto musical. Vinicius condena o jazzista afro-americano a jurar fidelidade eterna ao estilo tradicional do jazz de Nova Orleans. Esse "bom selvagem" do improviso não pode aperfeiçoar sua técnica, nem evoluir intelectualmente. Assim, ele nega aos revolucionários do bebop Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Thelonious Monk o direito de romperem com a tradição, como ele e Tom Jobim romperam com o velho samba e a canção de fossa para criar a bossa nova.
O politicamente correto impede Vinicius de desfrutar as sutilezas do moderno. Miles Davis e John Coltrane, então, nem pensar... Diz Vinicius: "No caso do bop e do new sound não quero tocar, pois, parece-me, constituem apenas uma procura de caminho dentro de um insolúvel impasse. Admito que se goste de cool jazz, mas a impressão que tenho é de que nada mais é do que uma tentativa de abstratizar o jazz, dentro da atual fórmula absenteísta."
A primeira metade do livro é uma aula sobre a origem dos blues e do jazz e seus componentes sociológicos. É aí que surge o diferencial viniciano: importam menos suas ideias do que a maneira de expô-las. Nisso ele desmascara o crítico pedante que, embora vanguardista, é acadêmico no jeito de escrever. Uma coisa Vinicius nunca é: chato:
"Era tudo uma bem dolorosa história. Primeiro, o arrancamento violento ao solo natal, à comunidade primitiva, à vida selvagem mais livre, já começando a apontar através da necessidade os caminhos de uma cultura própria."
"A carne negra pendeu, sangrou, queimou, enlouqueceu na Geórgia, no Alabama, no Mississippi (...) Depois disso é de estranhar que o negro norte-americano cante blues?"
"Tais passeatas e enterros eram em geral fartamente regados a álcool, com o resultado de terminarem em grandes entreveros como aconteceu com a capoeiragem, no princípio do samba no Brasil. Grandes músicos de jazz acariciam até hoje gloriosas cicatrizes desses áureos tempos."
Além de abominar o jazz moderno, o Poetinha entrega-se a uma digressão infeliz num artigo de 1952 ("Foi muito Oscar demais") para a Última Hora: "Acho Gershwin talvez o melhor dos três piores músicos do mundo. (...) um grande palito-de-jacaré do jazz negro (...) Trata-se de um passarinho do Amazonas que ganhou esse apelido porque os jacarés com grande complacência deixam-no palitar-lhes os dentes com o bico dos restos de carne que se grudam em seus vastos incisivos. George Gershwin faz mais ou menos isso com os jacarés do jazz negro."
Vinicius fustiga justo Gershwin, um dos compositores preferidos do irmãozinho Tom; Gershwin, que nunca posou como músico de jazz, mas incorporou a blue note ao erudito e ao cancioneiro americano. Seus standards ("Summertime", "The Man I Love", "Embraceable You", "Fascinating Rhythm", "Our Love Is Here to Stay", "S Wonsderful") serviram de base para o improviso dos jazzistas de todas as escolas em todos os tempos. Sua ópera Porgy and Bess (1935) foi a matriz de toda uma série de peças líricas de inspiração popular, entre elas Orfeu da Conceição (1956), que traria fama internacional a Vinicius ao ser filmada como Orfeu Negro.
É pena, mas o crítico de jazz em Vinicius parou no tempo, na virada para os anos 1960. Em 1969, numa entrevista ao Pasquim, ele afirmava categoricamente: "Eu acho que o jazz acabou, não existe mais." Mostrou-se, apenas, condescendente para com o saxofonista Stan Getz, o garoto-propaganda da bossa nova, "uma filha moderna do samba tradicional, que teve o seu namoro com o jazz, sobretudo com o chamado West Coast."
Como ressalva Eucanaã Ferraz, no prefácio de Jazz & Co.: "Seria fácil apropriar a célebre imagem viniciana e afirmar que, enquanto durou, o amor (pelo jazz) foi eterno. Seja como for, as páginas que se seguem são belos, divertidos, tristes, emocionantes momentos de mais um grande amor entre os amores de Vinicius."