A mesa que deu início ao último dia da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) juntou dois pesos-pesados da música brasileira de origens opostas.
De um lado, o jornalista e historiador José Ramos Tinhorão, autor de dezenas de livros sobre a música original do país e famoso por suas polêmicas e por desprezar a bossa nova, Tom Jobim e a Tropicália, por exemplo.
“O samba tradicional era muito certinho, metido, marcado no compasso dois por quatro. A grande invenção do João Gilberto foi desacentuar o tempo. É como goteira que não cai certinho o tempo todo. A bossa nova é ritmo de goteira”, desdenhou Tinhorão usando o exemplo cunhado pelo sambista Moreira da Silva em alusão à onomatopeia da síncope da batida do violão de João Gilberto, que fundou o gênero.
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Leia a matéria completaPara o marxista Tinhorão, a bossa nova é usurpação do jazz americano que surgiu como mais um dos enlatados culturais americanos que vieram em venda casada com a tecnologia importada.
Tinhorão provocou “quem tivesse internet” a procurar a música “Mr. Monotony”, interpretada por Judy Garland, e verificar que se trata de “Samba de Uma Nota Só”. Ele ainda citou “Desafinado” como cópia de outra música.
No corner oposto, estava o poeta Hermínio Bello de Carvalho, também pesquisador, produtor de muitos dos discos mais importantes do Brasil, parceiro de Cartola e espécie de “descobridor” de Paulinho da Viola e Clementina de Jesus.
Carvalho defendeu Tom. “A invenção da bossa nova não tem nada a ver com outro tipo de samba. É samba, sim. É brasileiro, sim”, disse. “O Tom é um grande compositor. ‘villalobiano’. Não digo só por mim. Ele era reverenciado por um parceiro meu: Alfredo da Rocha Vianna, o Pixinguinha. Eu sigo Pixinguinha. Temos que reconhecer. Eu ouço Tom com prazer imenso”,disse Carvalho.
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Leia a matéria completaOs dois estão na faixa dos 80 anos e com algumas limitações físicas: Hermínio usa bengalas e Tinhorão tem problemas de audição. Ambos são articulados e falam bastante. A “surdez seletiva” de Tinhorão gerou momentos muito engraçados quando ele recebeu um par de fones de ouvido da equipe da festa e conseguiu, finalmente, ouvir o retorno dos microfones dos colegas de palco.
“Eu tô fazendo uma força danada para te escutar”, disse o pesquisador.
“E eu tô fazendo uma força danada para te provocar”, rebateu Carvalho, autor de sambas com Cartola, Chico Buarque, Baden Powell e Pixinguinha.
Divergências à parte, ambos enalteceram o legado de Mário de Andrade na música popular brasileira. Tinhorão citou o livro “A Música Popular Brasileira na Vitrola de Mário de Andrade”, de Flávia Camargo Toni, para falar dos escritos do paulista sobre a cena musical brasileira.
“Ele tinha uma vitrolinha. Ele colocava o disco, ficava fazendo a barba e ouvindo o disco. De tudo o que a Vitor editava, só interessava a Mário os discos que falassem de música popular brasileira, folclórica ou urbana. Quando tinha algo de que gostava, ele anotava os dados técnicos e tecia considerações sobre o que tinha ouvido. Para o Mário, não era só gostei ou não gostei. Ele ia buscar a história por trás do que estava ouvindo”, disse Tinhorão.
Carvalho falou sobre a recente divulgação de uma carta enviada pelo escritor ao poeta Manuel Bandeira na qual cita sua “tão falada homossexualidade”.
“Fizeram tanto escândalo com essa carta e ela não diz nada. Pelo contrário, coloca mais dúvida. É sensacionalismo à toa. O Mário era confuso sexualmente. A gente nota isso na literatura dele. Quando o assunto é abordado, sempre tem uma carga de agouro, quase uma maldição. Era algo que o fazia sofrer. A discussão sobre a sexualidade do Mário ou de qualquer um, se for aprofundada, vai se ver que existe uma coisa banal e rasteira”, disse.
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