• Carregando...
 | /
| Foto: /

A literatura não tem limites — ou não é literatura. Se quiser mesmo escrever, um escritor deve aceitar o asqueroso e o ignóbil — ou terá as mãos atadas. Pensamentos difíceis me vêm durante a leitura de Jeito de Matar Lagartas, novo livro de contos de Antonio Carlos Viana. Vêm e me arrastam para uma divagação. A memória me traz de volta um aluno que, em uma oficina literária, me entregou, um dia, um envelope lacrado. “Aqui dentro está um conto que escrevi”, ele me disse. “Quero lhe pedir que o leia, mas quero lhe pedir também que não conte a ninguém que o leu”.

Fez outras exigências, ainda mais duras. Eu só poderia ler seu conto quando voltasse para casa. Deveria devolvê-lo em um envelope lacrado também. E o principal: jamais faria qualquer referência a ele em minhas aulas. Depois, sempre em segredo, o aluno me pagaria um café e eu, em troca, lhe diria o que achei de seu relato. Curioso, aceitei as regras do jogo. Abri o envelope com as mãos trêmulas. Era um dos mais belos contos que já li.

Li, reli e o lacrei. Trata do suicídio de um homem na faixa dos 30 anos. É um sujeito pacato, pai de dois filhos pequenos. Ele está deitado em uma banheira, onde acaba de cortar os pulsos. O sangue escorre com lentidão. Mata-se porque, em sua vida secreta, é um pedófilo. O mais chocante: faz sexo à força com os próprios filhos. Mata-se para matar o monstro que leva dentro de si.

Livro

Jeito de Matar Lagartas

Antonio Carlos Viana. Companhia das Letras, 152 pp., R$ 34,90.

“Antes de comentar o conto, quero lhe dizer que não sou psicólogo”, adverti meu aluno. “Tampouco sou da polícia, ou do juizado de menores”. O rapaz estava apavorado com a história que arrancara de si mesmo. Seu medo maior: que tomassem o conto como uma confissão. “Também não sou padre confessor”, disse. “Não estou aqui para emitir um julgamento moral. Posso dizer, apenas, que, apesar de repugnante, seu conto é magnífico”. Ou talvez por isso.

Pedi a meu aluno que tomasse coragem e o lesse, enfim, durante a próxima oficina. Voltou para a aula em silêncio. Continuou a anotar e anotar. Jamais pediu a palavra. Nunca leu o conto. Um dia, simplesmente desapareceu. Creio que não fugiu de mim, mas de si mesmo.

Volto às narrativas de Jeito de Matar Lagartas. Os contos de Viana são muito mais sutis. Vejam o caso do relato que empresta o título ao livro. No início do verão, as lagartas invadem o sítio de Tia Marluce. Ela não reage. “Tia Marluce, com sua alma de santa, não gostava de matar nada”. Mas Laércio, o filho do caseiro, se delicia estourando as lagartas com os pés. “Dava vontade de fazer igual.”, rememora o sobrinho narrador. “E começamos a fazer tudo longe do olhar dela”.

Cada um de nós tem seu jeito — seu estilo — de lidar com a morte. Lídia, a filha de criação, dizia que não tinha medo. “Tinha nojo”. Mas não é só o medo que pode despertar um monstro dentro de nós, o nojo (o asco) também. “A verdade é que não dava para ter pena daquelas coisas asquerosas rastejando por tudo que era canto”, o menino argumenta. Ao contrário de Laércio, ele preferia juntar um bocado de lagartas, amarrá-las dentro de um saco plástico e assistir à morte lenta.

Já Lídia achava melhor incendiar as larvas, “gostava de ver a labaredazinha se contorcendo, seguida de um pequeno pipoco”. Cada um tem seu modo de viver o repulsivo. Cada um tem sua própria maneira de ser repulsivo também. Certa manhã, porém, as lagartas desaparecem. “Voltamos para casa sem saber como iríamos preencher o resto do dia”, admite o narrador. De maneira abrupta, o sentimento de nojo e seu correlato, o gesto asqueroso, cedem lugar ao vazio. E logo depois ao sexo.

Não é preciso ser pedófilo: todos cometemos nossas pequenas barbaridades. Em outro conto, “Cremação”, dona Deusinha se casa com Odilon, o dono de uma funerária. Passam a lua de mel no quarto dos fundos, logo depois dos caixões, para economizar no hotel. Mais tarde se mudam para os fundos da loja. “Tudo lhe trazia o cheiro de morte, embora não soubesse qual o seu cheiro, pois nunca chegara perto de um defunto”.

Dona Deusinha tem um amor secreto, certo Benjamin, paixão da juventude. O cavalheiro trabalha na Paris Modas, a poucos metros da funerária. Ela o ronda — mas um dia descobre que seu amor é um homem casado. Conforma-se, então, com sua vida medíocre. Tem cinco filhos, mas a avareza de Odilon é tão grande que na casa é “tudo cimentado, tudo cinzento, da cor da morte”. Só um desfecho mórbido abrirá o caminho para a esperança.

Algo parecido acontece com Annemarie em “A caixa”. Um dia, ela recebe uma caixa pelo correio. O conteúdo é clássico: uma cueca de Duda com a marca de batom, acompanhada de um bilhete. Pensa em correr para a casa da mãe, mas prefere esfriar a cabeça. Entra, então, no inferno das especulações. “Se Duda chegasse naquela hora, não sabia do que seria capaz. Via agora que todo mundo traz dentro de si um assassino”. Como meu aluno anônimo, também Annemarie se espanta com o monstro que habita seu interior.

Duda lhe telefona, ela não consegue falar. “A cueca olhava para Annemarie com sua brancura maculada. A caixa continuava no chão”. Os impulsos a empurram, mas ela se apega aos últimos freios. Para compensar, “palavras sujas” lhe vêm à cabeça. “Que alívio! Ela conseguia pensar tranquilamente com tais palavras sujas”. O ódio se converte em erotismo. Tênue fronteira a separar o amor do mal. Conclui Annemarie que sem algumas palavras ignóbeis a vida a dois não se sustenta. Talvez sem uma caixa suja também — e, assim que pensa nisso, decide jogá-la no lixo e ficar com a ferida que ocupa seu lugar.

“Ao voltar da área de serviço, Annemarie se sentou na poltrona, com a alegria de viver recuperada”. Decide viver com um rombo — o ignóbil — dentro de si, mas continuar a viver. Faz alguma coisa dos pensamentos repulsivos que a dominam: deles extrai forças para prosseguir. A caixa — a literatura — se torna, enfim, um sinal de que somos humanos. A caixa de Annemarie é como o envelope lacrado que meu aluno me ofereceu. Ela guarda o insuportável que, no entanto, trazemos dentro de nós.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]