Somos todos personagens de nós mesmos. Não me lembro quem disse isso, mas tem a ver com a conversa que tive com Cristovão Tezza.
“Sempre que escrevemos sobre nós mesmos, criamos imediatamente um personagem”, diz o escritor. Foi assim que ele criou um “Cristovão Cronista” e com ele produziu 335 textos publicados ao longo de seis anos na página 3 desta Gazeta.
O périplo começou num 1.º de abril, em 2008. E terminou em 4 de novembro de 2014. Ou melhor, a coisa toda termina de fato no próximo sábado (12), quando Tezza lança, na livraria Arte e Letra, “A Máquina de Caminhar”, antologia com 64 crônicas num volume organizado pelo jornalista Christian Schwartz e ilustrado pelo cartunista Benett.
É o segundo livro feito a partir da labuta como cronista. O primeiro reuniu uma centena de textos e foi publicado em 2013 com o título “Um Operário em Férias”.
Cristovão gosta de rituais e a publicação de um livro é um dos que mais o agrada.
O convite para escrever na Gazeta veio colado no sucesso espetacular do romance “O Filho Eterno”. A repercussão do livro deu a Tezza os argumentos que precisava para largar o emprego de professor na UFPR e viver do trabalho como escritor. Aceitou ser cronista mesmo sem ter experiência na área e aprendeu o ofício a duras penas.
“Considero minha vida de cronista uma experiência completa”, diz o escritor. “Comecei realmente como aprendiz, tateando a forma e enfrentando minha ignorância das limitações e potenciais do novo gênero. A crônica é um texto difícil, enganador e manhoso, o que logo percebi.”
Com o tempo, ele ganhou segurança e diz ter curtido “os prazeres” da crônica. Foi uma segunda fase. O problema foi quando veio a terceira. “Foi quando percebi que a experiência pessoal começava a se esgotar, e que o gênero começava a invadir o trabalho central da minha vida, que é a literatura. Era o momento de parar.”
Os textos de “A Máquina de Caminhar” fazem uma síntese carinhosa do Cristovão Cronista e o conjunto funciona como uma boa conversa com o próprio autor (já bati papo com ele algumas vezes e sei como é): ele é capaz de falar de tudo: de política, de literatura, de futebol e até de si mesmo.
Cristovão Tezza. Record, 192 pp., R$ 37,90.
Lançamento no sábado (12), às 11h. Livraria Arte e Letra (Alameda Presidente Taunay, 130 – Batel), (41) 3223-5302. Entrada gratuita.
Um inferno de leitores
Como escritor de romances, o maior choque que Cristovão Tezza teve ao escrever crônicas semanais para o jornal foi a descoberta súbita de uma multidão de leitores pronta para responder ao que lia no jornal.
Afinal, para o cronista, o inferno são os leitores?
“É engraçado, mas uma imagem assim me veio à cabeça com o primeiro choque de quem se aventura num jornal: a figura inescrutável do leitor. E, em tempos de internet, uma figura instantânea”, diz Tezza.
“O leitor de literatura costuma ter um bom trânsito com o registro da ambiguidade e da ironia, que são elementos centrais da ficção. Mas o jornal nunca pretende ser o espaço da ficção; o jornal é por sua própria natureza o espaço dos fatos, da ‘verdade’, das opiniões diretas. Como a crônica quase sempre invade o território da ficção, essa sutileza nem sempre é percebida pelo leitor.”
Ele se lembra da ocasião em que escreveu sugerindo que o Brasil arrendasse as prisões suecas, “que estão às moscas”, para resolver a superlotação das cadeias brasileiras – uma ironia que passou despercebida por muitos.
“Em outro momento, imaginei uma situação futura em que o consumo de carne fosse proibido e uma polícia vegetariana saísse caçando contrabandistas e viciados em carne. Houve quem achasse, a sério, a ideia interessante.”
As duas crônicas, “Prisões suecas” e “Notícias de 2113”, estão na antologia lançada agora.
Começando pelo básico: o domínio de leitura (nem vou falar da escrita) do brasileiro é reconhecidamente muito baixo, segundo todas as estatísticas que levantam nossa capacidade de interpretação de texto. Considerando o tamanho do Brasil, a sua complexidade econômica e o índice de urbanização, considerando o seu gigantesco potencial, decididamente não somos um país de leitores.
Cristovão Tezza: “Não somos um país de leitores”
Alguém disse uma vez que escrever em jornal é, com mais frequência do que se pode imaginar, escrever para pessoas que não gostam de ler. Você experimentou isso de tentar falar com alguém que não quer ouvir?
Começando pelo básico: o domínio de leitura (nem vou falar da escrita) do brasileiro é reconhecidamente muito baixo, segundo todas as estatísticas que levantam nossa capacidade de interpretação de texto. Considerando o tamanho do Brasil, a sua complexidade econômica e o índice de urbanização, considerando o seu gigantesco potencial, decididamente não somos um país de leitores. Dizer que a educação, do fundamental ao ensino médio, é muito ruim, com efeito cascata em praticamente todos os aspectos da vida, é dizer o óbvio; o que me parece mais terrível é que não se vislumbra absolutamente nada no horizonte que prometa uma situação melhor mais adiante. Pelo contrário, vai piorar.
De que forma?
O crescimento do livro e da leitura que de fato aconteceu nas últimas décadas decorreu como consequência direta da invasão tecnológica (computadores, tabuletas digitais, smartphones…), quando milhões de pessoas, que jamais haviam se detido numa palavra escrita na vida, súbito tiveram que escrever e ler e-mails, mandar mensagens, tuítes, participar do Facebook, mergulhando por acaso no mundo estranho da escrita, que os aparelhinhos colocavam como mágica diante delas. Não houve nenhuma mediação cultural e educacional nesta passagem; a escola simplesmente vem se arrastando atrás. As torres de retransmissão de telefonia tiveram mais impacto na educação brasileira recente do que qualquer projeto para o ensino brasileiro – se houve algum.
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