• Carregando...
 | Felipe Lima/
| Foto: Felipe Lima/

A coleção Otra Lingua, organizada por Joca Reiners Terron para a editora Rocco, tem o mérito de verter para o nosso idioma um leque variado de autores publicados originalmente em espanhol. São eles escritores originais e inventivos, que permaneceram muito tempo ignorados do público brasileiro.

O primeiro da lista, Mário Levrero, não poderia ser melhor escolhido. O autor uruguaio que é conhecido como um “ raro “ pelos leitores e pessoas que veneram sua obra.

“A Novela Luminosa”, inédita em português, é um livro que contém um dos prólogos mais extensos e complexos da literatura. Com mais de 400 páginas, problematiza em um diário íntimo a incapacidade do autor em continuar a escrever a “novela luminosa”, iniciada na década de 1980.

Outra grata surpresa da coleção é a obra de Eduardo Halfon intitulada “O Boxeador Polaco”. Nessa obra seis narrativas podem ser compreendidas como contos ou mesmo como um romance fragmentado, já que as mesmas se entrelaçam e se comunicam entre si. O protagonista do livro é o próprio Halfon, que transformado em personagem, conduz o leitor a refletir sobre diversas questões suscitadas pelo exercício de ler e escrever.

Halfon trilha o caminho da metaliteratura, uma tradição importante entre autores de língua hispânica, como Jorge Luis Borges e Enrique Vila- Matas. Ao narrar a sua experiência de vida como acadêmico de forma fragmentada, a narrativa de Halfon está em consonância com as teses de Bourdieu sobre a história de uma vida, que normalmente é compreendida como um “deslocamento linear e unidirecional, trajetória coerente, repleta de eventos significativos com um início e um fim determinados’.

Bourdieu aponta em seu ensaio A ilusão biográfica a fragilidade dos argumentos que sustentam esse modo de ver uma história vida, problematizando- os como inconsistentes.

O autor, Eduardo Halfon, nascido na Guatemala, narra em um dos textos da obra as agruras do professor Halfon (autoficção?) que, ao propor a leitura de Tchekhov e Maupassant, encontra uma recepção precária dos alunos, longe daquela que um professor consciente do seu mister deveria receber dos seus pupilos. A vida acadêmica, a tarefa de divulgar e ensinar literatura para o narrador é algo que fracassa, mais pelo meio em que se tenta trabalhar a literatura que pela capacidade profissional do próprio autor.

O texto intitulado Distante, retrata o perfil de alunos sonolentos, embrutecidos e entediados com as inventivas do professor de literatura, que tenta avançar com o curso também com Joyce e Flannery O Connor. A exceção cabe ao aluno Juan Kalel, que além de compreender as textos, também se revela um ótimo escritor.

Kalel se apresenta à primeira vista uma possível redenção entre os alunos indolentes, contudo acaba desistindo da faculdade para voltar à sua cidade natal e se afastar definitivamente da literatura. Nesse ponto, subjaz ao texto narrativo, a crítica à condição social da América latina, a precarização da cultura e a desvalorização das ciências humanas em um mundo onde tudo é mediado pelo mercado.

Um leve travo de amargor, de decepção com o exercício da literatura ou com os eventos que a circundam, como cursos e congressos acadêmicos, perpassam vários contos do livro.

Em Tawaineando, a vida acadêmica é tematizada e criticada de forma contundente. O academicismo, sua prática repleta de jogos políticos e jargões é abordado de modo descontínuo pela literatura, supostamente porque as práticas literárias e acadêmicas se tangenciam e dialogam, seja por que os escritores muitas vezes pertencem ao círculo acadêmico ou mesmo porque desejam ser legitimados pelas instituições de ensino. O autor guatemalteco põe o dedo na ferida. Nessa narrativa Halfon expõe os bastidores de um congresso interdisciplinar que debate a obra do escritor norte- americano Mark Twain. Muito do universo acadêmico é ironizado de forma corajosa nesse texto pelo narrador- protagonista, principalmente o narcisismo dos profissionais que querem mais falar do que ouvir, sobrepondo de forma pretensiosa o seu saber ao de seus colegas.

O texto mais instigante do livro é o Boxeador Polaco, uma reflexão sobre a memória, o trauma e a literatura. A pequena narrativa é uma alusão a possibilidade de contar estórias em períodos de horror, incorporando a experiência do avô do próprio Halfon que discorre sobre sua vida em um campo de concentração.

O avô trabalha com algumas versões sobre suas estratégias de sobrevivência em um campo de extermínio, uma metáfora do próprio fazer literário, no qual o que mais interessa não é a recuperação exata dos fatos, mas a revisitação dos mesmos através dos ardis da memória aliados à imaginação criadora.

Provavelmente mais acessível que alguns autores que exerceram a metalinguagem, simplesmente porque a leitura flui, não significa dizer que Halfon não merece ser lido. O principal motivo deles é a dedução de que parte de sua obra pode ficar sem tradução para o português, assim como a maioria dos outros autores garimpados pela coleção Otra Lingua.

Desse modo, O Boxeador Polaco seguiria entre nós como um caso isolado de seu talento. Nós leitores, como os alunos do conto Distante, repelimos frequentemente o que a literatura pode nos oferecer, insistindo em não avançar por seus meandros, em não aprofundar sua origem. Buscar a origem seria avançar a fronteira, perscrutar no idioma espanhol em que nasceram tais narrativas seus motivos essenciais, seus fundamentos.

Marcelo B. Alcaraz é doutor em Literatura pela UFSC e autor do livro “Senhor Z”.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]