
A velha sentença “biografado bom é biografado morto” não faz sentido para as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, que esmiuçaram um personagem com mais de 500 anos de história – e ainda vivinho da Silva – para criar a obra Brasil: Uma Biografia. O livro não é a, porém, uma biografia do país que reconstrói sua personalidade plural em uma trajetória ininterrupta de lutas e contradições.
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A pedidos
A ideia do livro nasceu a partir de um pedido da editora Penguin, na Inglaterra, país que, como Portugal, deve receber a obra traduzida ainda no segundo semestre deste ano.
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Do “descobrimento” ao Brasil escravocrata; do ciclo do ouro aos reinados; da Era Vargas às manifestações que tomaram as ruas do país em 2013. De 1500 até agora, nenhum período escapa da história contada sob o ponto de vista da dupla, que, submetendo-se ao desafio da biografia, propôs um relato dos fatos por meio de um texto narrativo.
É um dos pontos fortes da obra. A escolha de uma forma mais descontraída de contar a história da História –ainda que obedeça a todos os padrões rigorosos de pesquisa e respeito aos fatos – foge do modelo tradicional dos livros escolares, com os quais muita gente se acomodou a conhecer a trajetória do país. Por isso, a obra flui, sem engasgos.
Lilia Schwarcz, uma das autoras, explica que a escolha por este tipo de texto, que mais se aproxima do relato, foi uma decisão que a permitiu ampliar as próprias vozes dos acontecimentos, pois traz para o “palco” personagens tão importantes quanto os velhos conhecidos.
“Como a obra nasceu para ser uma biografia, trouxemos personagens muito famosos, mas também os anônimos, para dar sentido real a uma história do Brasil”, comenta. “Esse país tem seus grandes políticos, mas no livro também era preciso caber os intelectuais, os artistas, a sociedade que atuou e que atua”.
Quebra-cabeça
A linguagem narrativa e a ideia principal de fazer os leitores não apenas conhecerem, mas refletirem e até mesmo discutirem os fatos e suas consequências, abrem espaço para algo que vai mais além do simples encaixe das peças deste gigante quebra-cabeça.
Livro
Lilia M. Schwarcz e Heloisa Murgel Starling. Companhia das Letras.
792 pps. R$ 59,90. História.
Apoiada também em uma vasta iconografia, a interpretação é quase uma lógica no texto das autoras, que decifram efeitos, não se fecham somente em análises históricas, mas contestam doutrinas enraizadas que poucos argumentos têm para sobreviver.
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Muitas destas considerações reforçam o novo entendimento de questões relacionadas, por exemplo, à “conquista” dos portugueses na América e das relações do sistema escravocrata que se estabeleceu no país ainda na segunda metade do século 16: a aproximação inicial dos portugueses e dos índios não foi pacífica; os indígenas foram sim escravizados por muito tempo; e não há como negar os resquícios da violência e da sociedade escravista até os dias hoje.
Tal como a realidade da história brasileira, o antagonismo estabelecido já na chegada dos portugueses à terra tupiniquim se faz presente em todos os 18 capítulos do livro, explícito – ou muitas vezes camuflado – nas relações de poder e submissão, tão fortemente marcadas na colonização, no processo de independência e no desenvolvimento do país como república e como território democrático.
Mas, se por um lado temos um livro “indignado”, por outro há relatos afetivos que revelam a identificação das autoras com o país. “Ao fazer do Brasil uma história, o livro olha para vários lados. Pelo menos procura olhar para vários lados”, ressalta Heloisa. A primeira biografia do Brasil não discute com os fatos, mas os questiona.
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