“Meu livro vai causar barulho”, profetiza o catarinense Paulo Venturelli, 65 anos, ao falar sobre “Madrugada de farpas”, romance homoerótico que lança no próximo sábado (12), pela editora Arte & Letra. A trama é ambientada no Departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) – instituição da qual “Ventura”, como alguns o chamam, se aposentou no ano passado. Envolve Israel, um jovem branco de Santa Felicidade, e Obadah, um negro do Nordeste. Em comum, a literatura, os 20 anos e a arrogância.
Tanto quanto provocar estrondos em série – quesito no qual o escritor tem brevê – é provável que o livro arranque também alguns risos: Venturelli decidiu ironizar o disse-me-disse que corre pelas suas costas. “Acho que o professor Venturelli é gay”, fofocam os personagens, ao escalpelarem o corpo docente da instituição, enquanto descem as infinitas rampas da Reitoria.
O autor sabe do burburinho em torno de seus objetos de pesquisa, mesmo entre os pares. Jura que não se importa. Em troco, tornou-se uma referência em questões de gênero, mesmo sem ser um purista – antes um polemista, pronto para a briga, de galo. “Espero que o Toni Reis [líder LGBT] vá ao lançamento”, provoca o estudioso, uma autoridade na obra “O bom crioulo”, de Adolfo Caminha, e expoente em literatura gay. No Paraná, é capítulo único: antes dele, apenas Dalton Trevisan (“e seus mocinhos do Passeio Público”) e Wilson Bueno (“Mano, a noite está velha”) flertaram com o tema.
Depois de 20 obras publicadas, só faltava a Paulo Venturelli um romance com site specific – agora não mais. Além de pesquisas em Adolfo Caminha e em João Silvério Trevisan, aventurou-se por mares nunca dantes navegados.
Estudou, por exemplo, homoerotismo na literatura infantojuvenil, questão tratada em um caudaloso, senão escandaloso, ensaio, ainda inédito. “Ovas” para quem duvidou que fosse possível. Mostra a prova. Na lendária biblioteca de mais de 15 mil títulos – que soca seu apartamento no Bacacheri – pelo menos 50 títulos são livros para crianças e adolescentes criados por dois pais, para citar um dos casuísmos.
Enquanto a publicação do ensaio não vem, seguida de abalos sísmicos, o monástico Venturelli – que dedica os três períodos do dia à leitura e à escritura – pode tirar uma folga no exílio e ir ao bar Wonka, como fez há pouco, declamar versos da coletânea “Bilhetes para Wallace”, “um menino que conheci”.
O cara que bota fogo no circo: leia o perfil de Paulo Venturelli
Exato – Paulo Venturelli fez pesquisa de campo para produzir o romance “Madrugada de farpas”. Seu laboratório, a Praça Osório, no Centro de Curitiba, onde entrevistou 24 garotos de programa, entre 18 e 28 anos.
“O número de pesquisados foi proposital”, peguilha, sem deixar de alertar que seguiu roteiros rígidos e tratou o material com a acuidade de antropólogo. Teve de pagar pela conversa, como se fosse um cliente, pois interrompeu expedientes com sua caderneta, o gravador e questões de fundo. Saldo positivo. Alguns dos ouvidos se tornaram seus amigos.
Apenas um resistiu em contar pormenores. “Até então, eu repetia os mesmos clichês de todo mundo. Depois das conversas descobri que o universo desses jovens é muito mais diversificado do que se possa imaginar”, diz.
Por ironia, a investigação que lhe revelou o submundo dos hotéis de alta-rotatividade do Centro serve apenas de subtexto ao romance perfuro-cortante entre Obadah e Israel, personagens de “Madrugada de farpas”.
Paulo Venturelli. Arte & Letra, 156 pp., R$ 37,90. Lançamento na Livraria Arte & Letra (Alameda Presidente Taunay, 130 – Batel), (41) 3223-5302. Sábado (19), às 16 horas.
No novo romance, há uma distância oceânica entre a Praça Osório e o curso de Letras – sobretudo intelectual. Venturelli ficou com a segunda opção, sua velha conhecida. Fica a dúvida se, a exemplo de Roberto Gomes (“Alegres memórias de um cadáver”) e Cristovão Tezza (“O professor”), decidiu purgar os anos passados na UFPR, tornando-a seu cenário de exorcismo. Ele nega. “Escolhi situar a história entre dois universitários porque me permitiam transitar por mais discursos, além do erótico.”
Em tempo, que não se espere de Madrugada de farpas um drama psicológico, tampouco uma love story gay. A narrativa é fragmentada, de videoclipe, perfeita para o que se presta.
Se Venturelli tem pena da opressão que ainda pesa sobre os homossexuais, não demonstra. “Interessa-me investigar o desejo”, diz, ao lembrar que – depois de tantos anos de observação não participante – permanece em busca de uma resposta: o que leva dois homens a se apaixonarem? Estudou tudo o que pôde a respeito; ouviu muita gente – inclusive alunos, em desabafo – e permanece reunindo dados.
De modo que vai longe no ofício. “Estou atrás de um agente literário”, avisa, sobre os planos futuros, agora que está livre para as letras e para os temperos forte, agradáveis a seu paladar.
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