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“Com o poema, você pode construir uma relação”, diz Alice Ruiz. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
“Com o poema, você pode construir uma relação”, diz Alice Ruiz.| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

A poeta Alice Ruiz não sabe muito bem o porquê de ter começado a escrever. Tampouco planejou se tornar uma das maiores haicaístas e letristas brasileiras – além de seus maiores parceiros, Itamar Assumpção e Alzira Espíndola – Arnaldo Antunes, Waltel Branco, Rogéria Holtz, Zeca Baleiro e Zélia Duncan gravaram seus versos.

A escritora curitibana, radicada em São Paulo, esteve na cidade natal na última semana para a abertura da exposição Poeta Alice, em cartaz no Centro Cultural Sistema Fiep. A mostra, que tem curadoria de sua filha caçula, a música Estrela Leminski, faz uma espécie de retrospectiva da carreira da poeta, com textos, vídeos e obras interativas.

O conjunto reflete, principalmente, a essência pessoal de Alice, que publicou seu primeiro poema aos 26 anos – sua obra foi traduzida em antologias publicadas em todo o mundo.

Ela conversou com a Gazeta do Povo enquanto acertava com a filha os últimos detalhes da exposição:

Poeta Alice

Centro Cultural Sistema Fiep (Av. Cândido de Abreu, 200 – Centro Cívico), (41) 3271-9560. Visitação de quarta-feira a domingo, das 10h às 18 horas. Entrada franca. Até 26 de julho.

Teve um motivo específico para você ter começado a escrever?

Não sei por que (risos). Assim que aprendi a escrever, foi o jeito que achei de me expressar. Com uns 9 anos comecei a escrever uns continhos, e a poesia veio na adolescência. Mas nada intencional. Mas me identifiquei com a palavra muito cedo, a palavra vai além da expressão. É um espaço lúdico pra mim, de prazer mesmo.

A música é algo muito forte na sua vida. Você fala no texto da exposição que queria ser música, mas esbarrou na sua desafinação. Foi por isso que começou a escrever letras?

Não. Também não foi intencional. Com o tempo é que vim descobrir que vinha me preparando para tudo isso. Na adolescência, eu peguei o boom do rock. Nós todas éramos apaixonadas pelo Elvis Presley (risos). Eu estudava inglês no ginásio e queria saber o que estava cantando. Para melhorar meu inglês, comecei a traduzir as músicas. E quando eu não dava conta eu inventava dentro da métrica, da entonação. As letras começaram acontecer com o Ivo Rodrigues (vocalista do Blindagem, morto em 2010). Ele frequentava a nossa casa e, um dia, escrevi uma coisa que pela métrica e incidência de rimas, era uma letra. Ele musicou, mas nunca chegou a gravar. Mas foi aí que eu saí fazendo letra.

E qual a diferença principal entre escrever um poema e uma letra?

O poema pede uma elaboração maior. A letra tem características como a coloquialidade e o tempo. Se interessar por uma letra é totalmente diferente de se interessar por um poema. A minha comparação nesse caso é como amor e paixão: a letra na canção tem que te pegar de um jeito arrasador, de cara, como a paixão. Com o poema, você pode construir uma relação, assim como no amor.

Você é a primeira escritora a ministrar oficinas de haicai no Brasil. Como aconteceu isso?

Foi em 1990 que me chamaram pra fazer. É sempre assim, sabe? Me chamam. Faço e meu trabalho e ele vai atrás de oportunidades. A Simone Schimidt, minha madrinha das oficinas de haicai, trabalhava na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, e me chamou. Pedi uma semana pra desenvolver a didática, e não parei mais. Conheci boa parte do Brasil dando oficina. E eu amo isso, compartilhar o que aprendi.

Outra marca do seu trabalho é o feminismo: você escreveu uma série de artigos sobre o assunto. Enxerga que houve melhorias para as mulheres?

As 214 meninas sequestradas pelo Boko Haram foram resgatadas e todas estão grávidas (Alice se refere às mulheres que estavam sob poder do grupo terrorista, encontradas na segunda-feira passada). As mulheres ainda ganham menos que os homens. As pessoas quando ficam insatisfeitas com o governo federal chamam a presidente de vaca, piranha. Você já viu um homem ser chamado de boi ou de piranho? Não! Cada vez que alguém ofende sexualmente a mulher, e a sexualiza em qualquer circunstância, é machismo. Enquanto for assim, esse não é um assunto do passado, e temos que ficar atentas. Enquanto acontecer o que aconteceu com essas meninas, não acabou o machismo e não acabou o meu trabalho.Não posso parar porque sei que, mesmo se quando eu morrer, eu olhe e pense: “nossa, como a situação da mulher melhorou”, se a gente não estiver atenta, vai retroceder. O retrocesso está ali espiando o tempo inteiro.

Mas ao longo desses anos de militância e trabalho, você viu avanços?

Bom. Eu, nos anos 1970, quando escrevia meus artigos, eu jamais imaginei que, em vida, eu veria uma presidente mulher. A mulher estava muito longe do poder. Tinham pouquíssimas vereadoras, deputadas, menos ainda. Era uma área totalmente proibida pra mulher. Agora você vê ministras, isso é um avanço. Tem mais mulher alfabetizada, mais profissões. Mas, isso é mérito nosso, da batalha das mulheres.

O momento atual vem sendo criativo para você? Tem algum projeto em andamento?

Eu estou muito triste. A gente falou em retrocesso, e estou muito triste com o retrocesso que eu tô vendo na mentalidade das pessoas. Com esse acirramento do ódio, com a intolerância. E assim como eu, muitas pessoas que trabalham com arte estão com um sentimento horroroso de impotência. Mas estamos num momento de alta criatividade, até como uma legítima defesa. Já que não podemos fazer nada, vamos fazer muito aquilo que a gente sabe, que é trabalhar pela cultura. E eu me pego limpando a mesa. Parei de dispersar energia e estou organizando várias coisas.Tenho um livro na Companhia das Letras, de haicais, que sai esse ano, e também estou trabalhando em outras duas obras. Estou num afã de produtividade, e estou vendo isso nas pessoas que pensam essa situação que estamos passando.

A qual situação se refere?

É importante saber que nada que acontece no coletivo deixa de nos prejudicar. A maioria pensa:“ah, isso aconteceu lá longe!” Não, aconteceu com um igual a você. Se você massacra os professores, seus filhos vão sofrer com isso no futuro. Nada que acontece para os outros deixa de nos afetar. O sistema está muito interessado em nos deixar com esse véu de coisas a adquirir, consumismo, competições, o que nos deixa enlouquecidos, voltados pro próprio umbigo, e faz esquecer que a gente faz parte do todo.

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