Um dos primeiros textos “adultos” que escrevi na vida – cujo título retomo, tal e qual, neste breve ensaio – me tornou um discípulo involuntário de Jamil Snege, condição que reluto em assumir junto ao séquito aparentemente infindável de seus autodeclarados seguidores nesta cidade e alhures, todos escritores ou aspirantes a tal.

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Não conheci o “Turco”, como costuma chamá-lo esse fã-clube (curioso: talvez o apelido me servisse, olhando-se minha cara e minhas origens pelo lado materno); ao mesmo tempo, minha relação com a obra de Jamil é de distanciado respeito, e mesmo de comovida admiração, mas em última análise uma relação desapegada, impessoal.

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Morto em 2003, aos 63 anos, vítima de um câncer de pulmão, Jamil pode, em tese, ter lido minhas provincianas reflexões, publicadas num já distante 1998 no jornal laboratório do curso de Comunicação da UFPR. Mas é muito improvável que o exato número do jornalzinho em que eu, entusiasmado, deitava aquela minha humilde e algo ingênua colaboração enviada de São Paulo, para onde havia me mudado fazia seis meses, tenha passado pela mesa (dizem) sempre caótica da agência de propaganda tocada por Jamil à época, e, se chegou a pousar ali, certamente se perdeu no tumulto de papéis e objetos esquecidos.

Num tom desarmado, embora com pretensões ao humor e à ironia, o jovem autor daquele texto relata o que chama de suas “desventuras” – “exemplos de como sofre este provinciano”, assevera – e que, em suma, traduzem uma tímida revolta pelo alarde com que o cosmopolita, jamais um envergonhado como o provinciano, comunica seu desconhecimento de tudo o que vem de fora, e da província em particular: “De Registro pra baixo, é tudo Paraguai”, é a frase que o recém-chegado ouve dos novos colegas de trabalho, em referência à divisa de Estados entre São Paulo e o Paraná.

Alguns anos antes, no início daquela década de 90, em entrevista ao suplemento “Nicolau”, era Jamil quem, tomando a outra pista da mesma rodovia, caçoava: “O reconhecimento regional não passa da cidade de Registro. Veja, sou um cara relativamente conhecido em Curitiba. Quando vou para São Paulo de ônibus, chegou em Registro, já não. Se tem alguém que lhe conhecia no embarque, conversando com você, de Registro pra frente lhe ignora. Ele pergunta: ‘Quem é você?’”.

Comprova-se uma tese que há tempos venho desenvolvendo: a de que os moradores de qualquer grande centro urbano sempre saberão menos do resto do mundo. Seu universo se restringe à própria cidade e ao que houver de maior ou mais importante. Consola-me, enfim, ter muito mais a descobrir do que eles.

Christian Schwartz, jornalista e tradutor.

Só fui ler a entrevista de Jamil ao “Nicolau” há poucos dias – instado a, finalmente, de uma só vez, repassar de cabo a rabo a obra do famoso guru, juntando as peças de leituras esporádicas feitas ao longo dos anos. Ainda inocente de tudo, portanto, e como se desse notícia de um país distante, concluía aquelas minhas reflexões de 1998 anunciando pomposamente: “Comprova-se uma tese que há tempos venho desenvolvendo: a de que os moradores de qualquer grande centro urbano sempre saberão menos do resto do mundo. Seu universo se restringe à própria cidade e ao que houver de maior ou mais importante. Consola-me, enfim, ter muito mais a descobrir do que eles”.

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E, no entanto, a candura e o doloroso otimismo dessas frases ocultavam, repito, a tímida revolta do provinciano, e não demorariam a soar como desdém: um daqueles mesmos colegas de trabalho – a quem o jovem autor, no auge de sua ingenuidade, pede que leia suas reflexões antes de enviá-las para publicação – o acusa, não apenas de provincianismo, mas de certo “provincianismo blasé”.

Leitores fiéis

De novo, escrevi o que escrevi sem saber que, ao “Nicolau”, Jamil desdenhou: “Não existe necessidade de se projetar nacionalmente. Não compete ao escritor”. Se batia no peito para afirmar que lhe bastavam seus “quatrocentos ou quinhentos leitores fiéis”, o mesmo Jamil, paradoxalmente, dedicou boa parte de seus textos a repisar o tamanho da indiferença de outros tantos milhares – indiferentes, aliás, não só a ele, mas a qualquer pessoa com “talento genuíno”, conforme reza uma de suas crônicas mais conhecidas: “Curitiba está cheia de pessoas invisíveis”, ironizava. Tampouco poupou o complexo de inferioridade da província: “Tenho um amigo que diz que curitibano não cumprimenta o conhecido na rua só pra sentir que a cidade cresceu”, foi uma de tantas anedotas que contou na vida.

Mas o reverso da medalha do provincianismo é a autofagia. Fiel a essa bipolaridade da autoestima provinciana, Jamil tratou de ser autofágico contra a própria obra, ao definir “Como Eu Se Fiz Por Si Mesmo”, sua coletânea de esquetes autobiográficos entre líricos e cômicos, como um “livro paroquial” e, no próprio livro, anotar: “Estou cada vez mais provinciano. Ainda vou escrever um livro para ser lido só por quem frequenta minha cama”.

Gritos
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Na derradeira entrevista, à revista “Et Cetera”, fez um julgamento severo de “Tempo Sujo”, seu livro de estreia, até hoje lido com reverência por seguidores tardios: “Hoje reconheço que publiquei o esboço do que seria um pequeno romance sobre minha geração [...]. Mas tínhamos pressa em ocupar espaços, em produzir uma voz dissonante. [...] Alguém precisava gritar, e eu gritei”. Se relido friamente em 2015, “Tempo Sujo” (1968) – e também “Como Eu Se Fiz Por Si Mesmo” (1994), seu sucessor na vertente mais puramente autobiográfica da obra de Jamil – vale apenas como documento de uma época: é obra incompleta, o próprio autor reconhece, movida a arroubos – ou gritos – idealistas próprios do tempo e a sacadas quase publicitárias: “O primeiro ser criado não se chamava Adão; chamava-se Adeva e vivia muito feliz entre as macieiras até que o maestro do velho testamento inventou a conta de dividir”.

Essa fragilidade da obra – uma incompletude que é do todo, nem sempre das partes, pois há contos e crônicas memoráveis, além de uma peça (“As Confissões de Rousseau”) e de uma novela (“Viver É Prejudicial à Saúde”) que, enfim, se leem como obras acabadas – é o que, para mim, resulta numa comovida admiração por Jamil Snege.

Limítrofe

Como julgar esse renitente provinciano que, apesar de tudo (e de si mesmo, sobretudo), insistiu em escrever ao longo de mais de quatro décadas. O protagonista de “Viver É Prejudicial à Saúde”, alter ego de Jamil disfarçado de arquiteto, faz uma dolorosa autoanálise: “Gostaria que alguém me dissesse por que tenho de ser limítrofe, o quase, o relativamente, o por pouco. Até há algum tempo atribuí minha falta de brilho aos azares da sorte, à cidade, ao país, ao meio, à indolência, ao ser esquivo e esquizo que sou. Hoje percebo nitidamente que o me falta é talento, fervor, febre criadora. Aquela centelha a que chamam gênio [...]. Eis o que me falta: a capacidade de exprimir isso de maneira original, sem o já feito e o já pronto, o vulgar lugar-comum, a inércia da linguagem que transforma o dito numa dublagem do que deveria ser dito”.

Jamil deveria ter saído de Curitiba? Faltou ao Turco – permito-me, por fim, a intimidade – correr mundo? Mas e Dalton Trevisan, o provinciano mais renitente que já existiu, eterno morador do Alto da XV? A diferença é que Dalton fez (e faz) questão de ser lido – e foi assim que transformou a província no mundo inteiro.

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Christian Schwartz é jornalista e tradutor.