Uma lenda escocesa fala de uma caverna incrustada nas Black Cuillins–também conhecidas como Montanhas Negras –, na Ilha de Skye, em que o viajante encontra ouro pronto para ser levado livremente, sem qualquer empecilho. Mas poucos estão dispostos a executar a façanha, por mais tentadora que seja. É que, dizem, aquele que volta com o ouro no bolso deixa no local um pedacinho de sua alma, tornando-se um pouco mais maligno.
Autor de Sandman e Deuses Americanos, Neil Gaiman nunca tinha se deparado com essa história. Isso é particularmente surpreendente, considerando que estamos falando do homem que escreveu quase cem livros, entre ficção e não ficção, contos e romances, muitos enraizados em conceitos mitológicos e folclóricos.
A lenda o inspirou a escrever “A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras”, conto originalmente publicado na antologia Stories, de 2010, que agora ganha uma edição de luxo pela Intrínseca com ilustrações de Eddie Campbell (o mesmo de Do Inferno, HQ de Alan Moore).
“A verdade...” foi recitado pelo próprio Gaiman num festival no Sydney Opera House, chamado Graphic, com projeções dos desenhos de Campbell e trilha sonora composta pelo quarteto de cordas FourPlay. O espetáculo passou por Londres, Tasmânia e São Francisco, culminando numa apresentação num lotado Carnegie Hall, em Nova York, ano passado.
Se essas histórias significam alguma coisa, é sobre ter esperança. Para
se ter esperança, é preciso o desespero.
Como o conto se beneficia desse formato multimídia?
Uma das coisas que sempre tento fazer, como escritor, é entrar na cabeça das pessoas. Tentei fazer isso de uma maneira que lembrasse tradições antigas. Histórias como “Odisseia”, da Grécia, e “Conto dos dois irmãos”, do Egito, foram proclamadas . Além disso, eu queria fazer um experimento: e se tivéssemos ilustrações enormes? E se eu estivesse lá contando uma história? Essencialmente, é como se o público vivenciasse um filme dentro de suas mentes. Repetimos a experiência meia dúzia de vezes, e fomos aplaudidos de pé. Incrível.
Na história, quem leva o ouro da caverna perde o prazer pela vida. Você acha que o dinheiro faz isso com uma pessoa?
Normalmente, em contos, cavernas cheias de ouro mágico também são habitadas por dragões e coisas assim. Não era o caso aqui. Achei fascinante, em parte por causa da ideia de que algo pelo qual você não lutou para conseguir pode tirar uma parte essencial de você. É verdade que o dinheiro faz isso com as pessoas. Conheço casos. Para alguns, a riqueza lhes tirou o prazer pela vida. Para outras, era apenas algo que recebiam por fazer o que amavam. Penso em pessoas como o meu amigo Terry Pratchett (autor da série Discworld, morto em março, com quem Gaiman colaborou no romance Belas Maldições, de 1990). Ele era um dos homens mais ricos da Inglaterra, mas jamais escreveu por dinheiro. Escrevia porque amava livros.
O conto é sombrio e fantasioso, e, portanto, encaixa-se com outras obras suas, inclusive as infantis. Por que escrever sobre isso?
Já vivemos num universo em que coisas sombrias acontecem– e boas também. Uma das obrigações de um escritor é refletir esses dois tipos de mundo. Imagine se você escrever uma história assim: “Era uma vez um homem feliz que acordava feliz todos os dias, e tudo estava perfeitamente ótimo com ele, e, à noite, deitava-se superfeliz em sua cama. Sete anos depois, ele morreu feliz”. Os leitores se sentiriam enganados. A maioria das ficções é sobre personagens em busca de objetivos, tendo que solucionar problemas. Se essas histórias significam alguma coisa, é sobre ter esperança. Para se ter esperança, é preciso o desespero.
Vivemos num universo em que coisas sombrias acontecem– e boas também.
Uma das obrigações de um escritor é refletir esses dois tipos de mundo.
Você já colaborou com vários ilustradores. Por que Eddie Campbell dessa vez?
Os traços dele são simples, não são afetados. Ele é incrivelmente preciso. Mas há também o fato de ele ser escocês. Eu não queria sentir que estava lidando com um palco, com pessoas fantasiadas. Os dois protagonistas do conto precisavam vestir roupas que usariam na vida real, e não parecer que acabaram de sair de uma loja de fantasias.
Você sempre citou autores que o influenciaram, como J.R.R. Tolkien e Lewis Carroll. Destacaria algum escritor contemporâneo?
Quando você tem 54 anos, é um pouco mais difícil ser influenciado. Não digo mais coisas do tipo: “Você mudou a maneira como vejo o mundo!”, porque, a essa altura, minha visão de mundo, creio, é bem consolidada.
Hoje você influencia as pessoas.
Isso! Escritores jovens, na casa dos 20 ou 30 anos, leram-me durante suas vidas inteiras. Não é fascinante? De qualquer forma, hora ou outra leio algo que me dá uma sensação nova.
Tipo quem?
Por exemplo, David Mitchell [escritor britânico autor de Cloud Atlas]. Uma das razões pelas quais gosto de celebrar autores é que ninguém existe num vácuo. Nenhum artista, seja músico ou escritor, inventou a si próprio. Somos, na verdade, a soma das nossas influências.
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