Martin Luther King se tornou uma espécie de porta-voz do histórico movimento dos negros por direitos civis nos Estados Unidos.
Em uma de suas mais famosas frases, o reverendo disse que “o arco moral do Universo é longo, mas se inclina em direção à Justiça”.
É o otimismo do crente, que vê a redenção ao final do caminho de tormentas. Com a retórica da redenção, Luther King convidava à resistência pacífica, à paciência e à coragem para enfrentar os dias difíceis que ainda restavam.
“Entre o mundo e eu”, de Ta-Nehisi Coates, pertence a uma tradição diferente, igualmente relevante na história americana – a tradição da contestação mais ácida, que aposta no confronto mais do que no pacifismo, na cabeça erguida e na retórica crítica, na dureza mais do que na fé.
É a tradição que tem em seu centro Malcolm X e que passa pelos Panteras Negras.
“‘Os mansos herdarão a terra’ não significava nada para mim”, escreve Coates, filho de um Pantera Negra e leitor de Malcolm X. “Os mansos eram surrados no oeste de Baltimore, pisoteados no Walbrook Junction, espancados me Parks Heights e estuprados nos chuveiros da prisão municipal. Meu entendimento do universo era físico, e seu arco moral se inclinava para o caos e terminava num caixão.”
O entendimento “físico” do universo vem não só da ausência da religião, que aparentemente nunca fez parte da compreensão de Coates.
O racismo é uma experiência visceral, que desaloja cérebros, bloqueia linhas aéreas, esgarça músculos, extrai órgãos, fratura ossos, quebra dentes. Você não pode deixar de olhar para isso, jamais.
O “caos” para o qual esse universo estaria se inclinando esteve presente em sua vida desde cedo, assim como na vida da maioria dos negros americanos. E, em menor medida, na vida do filho adolescente de Coates, para quem ele escreve o livro.
Em formato de carta, “Entre o mundo e eu” é uma espécie de guia de sobrevivência para um negro americano.
Coates faz as devidas advertências sobre a diferença da vida que seu filho leva e a que ele teve na mesma idade. Em certo sentido, aos 15 anos, o garoto é um privilegiado, já que a melhora das finanças da família (Coates é um escritor e jornalista respeitado) o isola de problemas mais drásticos enfrentados por outros negros.
Mas a violência está lá – violência física, verbal e, muitas vezes, oculta.
Ta-Nehisi Coates. Tradução de Paulo Geiger. Objetiva, 150 pp., R$ 34,90.
Coates fala o tempo todo sobre a destruição de corpos (e não de almas) dos negros. Como contraposição, fala dos habitantes do “sonho” americano. E estabelece não só uma divisão entre os dois mundos como uma relação necessária entre ambos.
Seus objetivos são alertar o filho para que não se exponha aos que querem destruí-lo e, alvo muito mais difícil, “acordar os sonhadores” que têm na violência simbólica e real uma das bases de seu sucesso material.
Coates diz que decidiu escrever o livro neste momento não só porque o filho está prestes a entrar na faculdade e na vida adulta, mas também porque foi recentemente que o menino acabou dando mostras de já entender a que estava exposto – a que os negros americanos estão sempre expostos.
Num livro forte, de alta carga poética, Coates narra uma história que todos conhecemos, da tragédia da escravidão, do preconceito, do racismo e das seguidas mortes dos mais fracos nos Estados Unidos.
As conclusões a que ele chega – sobre a necessidade de agir de maneira mais dura e ácida como reação a tudo isso – podem desagradar a muitos.
No entanto, como disse o jornal britânico “The Guardian”, trata-se de um apelo contra a cegueira.
A cegueira que recai sobre nós sempre que deixamos de ver o óbvio, só por ele estar presente ao nosso lado todos os dias.