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Primeira edição de “Ulysses”, de James Joyce, publicada em 1922. | Creative Commons
Primeira edição de “Ulysses”, de James Joyce, publicada em 1922.| Foto: Creative Commons

Neste 2015 comemoramos 70 anos da primeira tradução em espanhol do “Ulysses”, de James Joyce. A história é curiosa. Consta que o governo argentino andava interessado em promover uma tradução de “Ulysses” na língua pátria.

Como é comum nos governos, mandou-se formar comissão, para a qual, ao que consta, foi nomeado, entre outros, Jorge Luis Borges. Certo dia, a comissão reunida, alguém comunicou que já havia uma edição argentina da obra, surpreendendo o grupo. O autor era um professor autodidata, desconhecido, chamado J. Salas Subirat.

Subirat traduzia e escrevia manuais da área de seguros. Por conhecer a língua inglesa, deu-se ao trabalho.

A comissão desapareceu, mas o trabalho de Subirat veio à tona. Em meio a inúmeros desafios propostos pela tradução, ele abriu o livro com uma apresentação das suas principais dificuldades. Em diversas passagens, transportou a linguagem das ruas de Dublin, materializadas por Joyce, para a língua do povo de Buenos Aires, tanto o dialeto lunfardo quanto o vesre, a ciência popular de trocar o começo pelo fim das palavras. Borges elogiou o resultado, ressaltando que Subirat errou bastante. Mas quem não erra ao traduzir “Ulysses”?

Os espanhóis, que durante muitos anos foram obrigados a se valer da tradução argentina, jamais gostaram da obra de Salas Subirat. Hoje existem outras duas traduções disponíveis em espanhol, além de uma em galego e outra em catalão.

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Mas, a questão que persiste é por que “Ulysses” é tão valorizado pela comunidade acadêmica? De todos os personagens literários do mundo ocidental, apenas Don Quixote pode se comparar a Leopold Bloom, o protagonista de “Ulysses”. Excetuando-se Jesus Cristo, se o considerarmos personagem literário e não histórico.

O livro está entre os mais cultuados da história. Jamais vendeu tanto quanto a “Bíblia”, “As Mil e Uma Noites”, o “Quixote”. No entanto, desde que foi lançado, em 1922, tornou-se objeto de estudos e análises.

Joyce, ironicamente, declarou que, com sua obra, deixaria os professores e estudiosos ocupados por séculos. Calculou 300 anos. Já estamos há quase cem desde seu surgimento e continuamos a discuti-lo.

O escritor cultuava suas próprias tradições. Era um supersticioso profissional, dedicado à análise da repetição de datas e nomes. De tal forma que sua obra criou uma tradição literária única, com a celebração, a todo dia 16 de junho, do Bloomsday, comemorado com eventos em todo o planeta.

“Ulysses” é um livro fenomenal, livremente baseado na “Odisseia”, de Homero. Jean Paris, um dos biógrafos de Joyce, chamou-o de incomensurável. A obra é escrita em diversos estilos, pelo menos um a cada capítulo. Ali há drama, poesia, ensaio, crítica literária, farsa, narrativa, reportagem, entrevista, dialética, catecismo, sermão, apologia, tratado, ciências matemáticas. E, no recurso mais incensado de todos, revela-se o monólogo interior, responsável por um dos grandes debates que cercaram a obra: o próprio Joyce tratou de apontar o inventor da técnica. Eduard Dujardin, escritor que, assim, estendeu a imortalidade de sua obra.

Jean Paris escreveu que, em “Ulysses”, “cem estilos se misturam: do elegíaco ao chulo, do jurídico ao pastoral, do religioso ao erótico, do científico ao demencial, convocados como que por uma perpétua magia”.

Só o capítulo VII traz 96 diferentes figuras de retórica: metonímia e metáfora, sinédoque e anacoluto, a obra incorpora trocadilhos, cacófatos, hipérboles, redundâncias, metáforas, onomatopeias.

Joyce apropria-se da linguagem musical, ele que era um tenor de bons recursos e pianista de festas, para dotar a linguagem de “Ulysses”, por exemplo, de fugas, trinados, rondós, stacatto, martellato, pizicato.

Tudo pensado e desenvolvido entre 1914 e 1921, a partir de Trieste – onde se radicou depois de deixar a Irlanda com Nora Barnacle – passando por Zurique e, enfim, Paris. Em grande parte da vida foi professor de inglês, função que deixou de lado já em Paris, quando sua fama começou a crescer e ele teve condições, enfim, de viver da literatura que produzia.

A fama foi sofrida, ainda que ele soubesse ser duradoura. Para chegar ao ápice, suplicou, brigou, ameaçou, processou, escarneceu, ridicularizou, blefou, transgrediu (e não só a sintaxe, mas as convenções sociais, a religião e os poderes políticos), deu calote, desesperou-se, mas, antes de tudo, trabalhou. Para sustentar a família e criar sua literatura, usou de todos os meios à mão, inclusive o de viver graças à ajuda do irmão, Stanislaus, e de amigos, como Ettore Schmitz, judeu de Trieste que mais tarde se tornou um escritor reconhecido em todo o mundo com o nome de Italo Zvevo.

Joyce transformou recordações em obra literária. Viveu os últimos 30 anos de vida sem pisar na Irlanda, escrevendo todos os dias sobre a própria Irlanda. Desprezava sua terra e vivia escravizado por ela. Sua mente jamais deixou a terra natal.

Joyce transformou recordações em obra literária. Viveu os últimos 30 anos de vida sem pisar na Irlanda, escrevendo todos os dias sobre a própria Irlanda. Desprezava sua terra e vivia escravizado por ela. Sua mente jamais deixou a terra natal.

Joyce foi criado nos cânones da igreja católica, ela se mostra onipresente nas suas obras, impregnadas de resquícios do ensino jesuíta. Stephen Dedalus é o mais evidente, mas Leopold Bloom, judeu, foi batizado três vezes.

Joyce confundia questões ideológicas com problemas pessoais. A agressividade era um de seus traços principais. Não apenas um agressivo retórico. Ernest Hemingway contava que saía muito com Joyce para beber em Paris. A certa altura, o irlandês puxava briga. Quando a situação ficava feia, chamava Hemingway para que resolvesse o problema.

Passou a vida sentindo-se traído. Pela Dublin que não parava de descrever, pela Irlanda, pelos colegas de juventude, pelos políticos, pelos amigos, pelos editores, pelos tipógrafos, pela censura, pelos governos, pelo irmão, pelas suas mecenas, por Nora Barnacle, pelas suas próprias palavras.

Ciumento de todos, invejoso da fama de outros escritores, crítico ferino da obra alheia, ego centrado em tempo integral, Joyce não era pessoa fácil.

Poliglota capaz de se expressar em mais de dez línguas, fluente em francês, italiano, alemão e dinamarquês, talvez sua genialidade justificasse tudo. Na redoma em que enclausurou a família, só havia lugar para a própria arte. Nora Barnacle, que reconhecia nunca ter lido nada do marido, respondeu assim quando lhe perguntaram o que achava da obra de André Gide: “Quando se é casada com o maior escritor do mundo não se presta atenção aos menores”.

Seus livros foram publicados com grande atraso, às vezes auxiliados pela superstição. Assim é que “Ulysses” foi publicado na França, em primeira edição, em 2 de fevereiro de 1922, dia em que comemorava 40 anos, exigência sua.

O livro foi proibido nos Estados Unidos e na Inglaterra. Só em 1934 é que foram liberados para publicação na América do Norte. A edição inglesa demorou outros dois anos para vir à tona. Durante esses anos, a obra saiu em edições piratas no Japão, duas traduções diferentes, e nos Estados Unidos – por um editor chamado Samuel Roth.

Em 1929 veio à luz aquela que é considerada ainda hoje a melhor tradução de “Ulysses”, até porque contou com a supervisão do autor da obra. Auguste Morel, Valery Larbaud e Stuart Gilbert fizeram o trabalho de verter para o francês, supervisionados por Joyce.

A edição que está no mercado, de Jacques Aubert, incorpora a tradução original de 1929, dando o crédito exigido.

As traduções em outros países europeus de sucederam. Em outras línguas latinas, Carlo Linatti, amigo de Joyce, já havia adiantado alguns episódios em italiano.

Em 1966, saiu a primeira tradução brasileira, de Antônio Houaiss. Foi uma empreitada, sem trocadilho, homérica. Houaiss, diplomata afastado pelo regime militar, enfrentava problemas financeiros. Ênio Silveira, dono da Editora Civilização Brasileira, homem de esquerda, preso mais de uma vez por crime de opinião, ofereceu ao amigo a tarefa impossível. Houaiss não só aceitou como atingiu a meta em 12 meses – tempo em que também trabalhou em outras atividades.

A tradução carece de algumas qualidades. O tradutor era linguista, não poeta ou romancista. A obra que ofereceu ao público é de andamento difícil, como se o tradutor estivesse mais interessado em criar neologismos e poemas concretos do que traduzir a linguagem joyceana. Há um acento pernóstico na tradução que não existe no texto original.

Mas Houaiss precisou escavar na rocha para chegar ao fim da tarefa. Suas referências eram poucas, além do texto da primeira edição. Não teve a seu favor nem as correções e acréscimos que “Ulysses” recebeu ao longo dos tempos.

Sim, porque o texto, mesmo depois da morte de James Joyce, continuou a ser revisto. O autor era tão perfeccionista quanto míope, corrigindo as provas do livro à exaustão. Mais ainda, suas cartas aos editores, parentes e amigos traziam capítulos inteiros da obra.

Nos anos 70, o professor da Universidade de Hamburgo, Hans Walter Gabler, reuniu uma equipe entre alunos e estudiosos para corrigir e ampliar o texto existente, com base no material disponível.

No início da década seguinte, o texto corrigido foi publicado, com o título de “correct text”, hoje conhecido como a Gabler Edition. Aí se iniciou uma polêmica com o professor de Harvard John Kidd, que alegava ter Gabler se utilizado de cópias e não apenas de originais para suas correções. Ao final, a versão Gabler terminou aceita, quase na totalidade.

Existem inúmeras edições em inglês do livro. As que foram lançadas pela Penguin Books trazem uma introdução valiosa do professor Declan Kiberd, especialista em “Ulysses”. A mesma editora lançou um volume anotado, para estudantes. É um primor, um catatau de 1,2 mil páginas.

Em português, ficamos 50 anos com a tradução de Houaiss. Apenas em 2007 saiu pela Objetiva a tradução da professora carioca Bernardina da Silveira Pinheiro, entusiasta de “Ulysses” que trabalhou sete anos da obra para, como afirmou, “mostrar que a obra de Joyce não era uma aventura intransponível, difícil e pesada, mas uma linguagem coloquial, convidativa”.

Nesse sentido, sua tradução é facilitadora, o que nunca foi o objetivo do autor. Os atalhos linguísticos de que a tradutora lançou mão ajudam ao leitor iniciante, ainda que a tradução pareça, em termos de criação literária, um exercício reducionista do original.

Em 2012 saiu a terceira tradução brasileira, pela Companhia das Letras, do professor e escritor paranaense Caetano W. Galindo, a melhor das brasileiras. Galindo traz o ritmo que Houaiss não conseguiu e a erudição que a professora Bernardina não mostrou. A tradução também inclui a notável introdução do professor Kiberd.

Existem ainda duas outras traduções em português. A de João Palma-Ferreira, de 1984, e o ótimo trabalho de Jorge Vaz de Carvalho, publicado em 2013, com posfácio precioso de Richard Ellmann, biógrafo de Joyce.

Na Espanha, em 1976, foi publicada uma tradução de José Maria Valverde e, em 1999, um trabalho melhor concatenado, assinado por Francisco Garcia Tortosa, à frente de uma equipe de tradutores.

Antes disso, em 1980, veio à luz uma edição em catalão, obra de Joaquim Mallafré – edição seca, como a de Houaiss, sem nenhuma informação, nem mesmo orelha. Em 2013 apareceu a tradução galega, coordenada pela tradutora Eva Almazán, em edição luxuosa, de capa dura.

As traduções de “Ulysses” não param de sair. A chinesa é de 2011. Este ano surgiu a segunda tradução argentina, de Marcelo Zabaloy.

“Ulysses” está traduzido em inúmeras línguas. A russa só foi editada depois do fim do império soviético. Dinamarquesa, sueca, holandesa, alemãs, italiana, grega, árabe, o universo não para de crescer.

Jorge Luis Borges, em seu curto ensaio “As versões homéricas”, fala da superstição das traduções e analisa diferentes traduções de um capítulo da “Odisseia”, quando Ulisses comunica os fatos ao espectro de Aquiles. “Qual dessas muitas traduções é fiel?”, pergunta Borges. “Repito que nenhuma ou que todas. Se a fidelidade deve ser prestada às imaginações de Homero, aos irrecuperáveis homens e dias que ele imaginou, nenhuma pode sê-lo para nós; todas, para um grego do Século 20.”

Assim também se dá com as traduções de “Ulysses”, a obra incomparável de James Joyce.

Ernani Buchmann é autor do livro “O Bogart Curitibano”.
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