Há 15 anos, Ferreira Gullar escrevia: “Falo aqui de Mário Pedrosa, meu querido mestre e amigo, um outro pai que a vida me ofereceu. Mas devo dizer, a quem não o conheceu e ainda não lhe leu os livros, que ele foi o grande pensador da arte contemporânea no Brasil, o fundador da crítica de arte brasileira moderna, pois aliava a seu conhecimento amplo da arte, da estética e da história da arte, uma intuição crítica excepcional e uma sensibilidade de poeta.”
Ler Mário Pedrosa (1900-1981) hoje vale por uma viagem no tempo: pela disciplina da história da arte propriamente dita e pela construção da crítica de arte no Brasil, da qual foi massa e mão de obra fundamentais. São, no mínimo, essas duas possibilidades que as edições recentes da Cosac Naify, “Mário Pedrosa: Arte, Ensaios”, organizada por Lorenzo Mammi, e “Mário Pedrosa: Arquitetura, Ensaios Críticos”, organizada por Guilherme Wisnik, nos apresentam. Esses volumes são o início da publicação da obra completa do autor.
Mas nesses livros há mais que arte e sua crítica. Mário Pedrosa era um homem engajado, engajado em seu trabalho com a arte mas também em seu próprio tempo e na sociedade em que nasceu. A história do Brasil, para ele, se confundia com a história de seu povo e da arte que ele conseguiu produzir, apesar das misérias e da perpetuação das desigualdades que marcam esse povo e essa história.
O olhar mais largo e generoso sobre as questões que o envolviam nunca lhe saiu barato. Preso e exilado durante o governo de Getúlio Vargas. Perseguido e exilado durante a ditadura militar. Participou da organização e fez curadoria de bienais de São Paulo. Foi partidário do PCB e chegou até a ser um dos organizadores da 4.ª Internacional Comunista. Mário Pedrosa atravessou o século 20 envolvendo-se profundamente com a política de seu tempo, mas nunca desistiu. Em 1980, já com 80 anos, foi o primeiro a assinar o manifesto de criação do PT.
Guilherme Wisnik (org.). Cosac Naify, 208 pp., R$ 49,90.
Arte e sociedade, arte e pensamento, arte e política, e os mesmos paralelos todos para a arquitetura. E até mesmo para a literatura. Independente do tema, do momento e do público a quem o texto se dirigia (muitos deles foram, originalmente, conferências que ele foi convidado a fazer), temos sempre uma abordagem profunda da arte e sua existência inerente a todas as sociedades e coletividades, alcançada através de uma longa recuperação de contextos históricos e da história crítica em torno do assunto. E as mesmas observações valem também para a arquitetura.
Essa necessidade de abarcar as questões estéticas em uma abrangência por vezes quase hiperbólica se explica pelo deserto crítico e editorial que dominava o pensamento sobre arte no Brasil. A cada texto de Mário Pedrosa, a cada conferência pronunciada, vê-se a consciência de uma pedra fundamental: ele de fato inaugurou o pensamento, ainda que nem sempre sistemático, sobre a arte e a sociedade brasileiras modernas. Para isso, precisava, claro, começar do começo. E isso não se fez sem alguma inspiração e sensibilidade para o assunto, mas se deu principalmente através de estudos e pesquisas atualizadas e conectadas à tradição europeia, abertas às vanguardas, e que sempre procuraram compreender, em perspectivas cuidadosas e pertinentes, o lugar que poderíamos, como país, ocupar nessa história. Isso só foi possível graças às viagens algo constantes do autor à Europa, seu tempo de estudos na Alemanha, em Berlim, e a um esforço constante movido pelo interesse em entender seu próprio tempo.
Do ponto de vista teórico, o marxismo foi uma grande ferramenta de organização ideológica e crítica em seus textos, mas não redundou em algo maior que eles, como aconteceu com alguns pensadores do século 20. Ainda assim, sua posição de esquerda sempre foi clara e consistente, revelando um comprometimento tanto estético quanto político do pensador.
Sua postura não conservadora permitiu-lhe, por exemplo, defender a obra dos artistas revelados a partir dos anos 1940 por Nise da Silveira, do Centro Psiquiátrico Dom Pedro II, e que hoje fazem parte do Museu de Imagens do Inconsciente. Partindo de todo um raciocínio sobre o que é arte, e o que é arte “hoje”, ele consegue incluir aquela produção específica em aspectos possíveis da manifestação artística que demandam não só respeito como um interesse específico: “Que é a arte, afinal, do ponto de vista emotivo, senão a linguagem das forças inconscientes que atuam dentro de nós?”
Ao mesmo tempo, a influência dos Estados Unidos o incomodava. Resultado incontornável de suas escolhas políticas? Um exemplo disso é o absoluto desprezo que sentia, por exemplo, pela pop art. Corrente vigorosa que nasce entre os ianques (para usar um termo caro à época) e que ainda influencia a arte contemporânea, a pop art segundo ele era conformista, “subproduto cultural tipicamente americano”. Vindos da arte comercial ou da publicidade, de profissões principalmente ligadas ao consumo de massa (pensa principalmente em Lichtenstein e Warhol), segundo Mário Pedrosa esses artistas temiam — desconheciam? — a tradição da pintura. “Não são artistas, porque são técnicos da produção de massa.”
Lorenzo Mammi (org.). Cosac Naify, 624 pp., R$ 79,90.
Mas em suas reflexões conseguia, por exemplo, pensar a arquitetura brasileira paralelamente à do México. No Brasil, com nossos povos indígenas nômades e sem tradição de grandes construções, tínhamos tido a oportunidade de começar a construir, literalmente, do zero. Daí nossa absoluta modernidade na arquitetura.
Nossos amigos latino-americanos, ao contrário, cuja história de opressão colonizatória tinha posto abaixo os grandes prédios e tradições urbanísticas da América pré-hispânica, precisavam lidar com essa tradição e o fizeram, de uma maneira vitoriosa mas também vindicativa.
A arquitetura para Mário Pedrosa foi o nosso verdadeiro e autêntico Modernismo — essa foi uma ideia inclusive que fundou muito da reflexão e discussão sobre os modernismos brasileiros (pensemos, por exemplo, em Annateresa Fabris). Os outros artistas, músicos e escritores e mesmo os artistas plásticos, tiveram que se haver com uma tradição um pouco mais sólida e assim o primitivismo dos nossos primeiros modernos retardou um pouco as grandes conquistas que as vanguardas poderiam oferecer. Essas conquistas, ao contrário, foram plenamente recebidas e antropofagicamente deglutidas pelos nossos arquitetos. Lúcio Costa e seus grupos de estudantes e seguidores foram o melhor exemplo disso. Assim, podemos entender o seu esforço para “disseminar” uma percepção mais atualizada entre os artistas, e não é de espantar que Mário Pedrosa tenha sido mais tarde chamado de “papa do concretismo”, título que, aliás, odiava. Apesar de sua relutância, sabemos que o concretismo carioca, que em um primeiro momento mantinha estreitas ligações com o movimento paulista, foi uma das vanguardas mais merecedoras deste nome em terras tupiniquins, e nasceu sob a égide de Mário Pedrosa.
Foi neste meio que Ferreira Gullar, e voltamos aqui para a poesia, o conheceu. O poeta, novamente, dois meses atrás: “Tive a sorte de me tornar discípulo de um homem que era exemplo de lucidez e sonho, de erudição e irreverência. Por tudo isso, só posso dizer que dei na sorte na vida.” O projeto de reedição das obras de Mário Pedrosa nos oferece um pouco dessa mesma sorte.