Você já pensou em se matar alguma vez? A morte é a única certeza da vida. A maioria foge dela como o vampiro da luz, mas muitos preferem ir de encontro a ela antes da convocação fatal. O professor de jornalismo e colunista do jornal "O Globo", Arthur Dapieve, resolveu abordar o suicídio pelo viés da imprensa no livro "Morreu na contramão - O suicídio como notícia" (Zahar). Ele mostra como a morte voluntária foi tratada pelo poder e pela religião através da história, com foco na imprensa, quando esta começou a existir na era pós-Gutenberg.

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Dapieve abre o jogo sobre sua motivação para fazer o livro.

- Acho que a única resposta honesta é: porque, variadas vezes, no decorrer da vida eu pensei em matar. Nada além de uma espécie de fantasia de válvula de escape, mas pensei. "There's a light that never goes out", dos Smiths, sabe? A transformação do interesse em livro, porém, só se deu na hora de escolher um tema para minha dissertação de mestrado em Comunicação. Nisso, eu não tinha nem distanciamento para sacar objetivamente este meu interesse. Foi a minha orientadora, Angeluccia Bernardes Habert, quem o "isolou". Então, abordei o tema pelo lado jornalístico, não exatamente o existencial ou o filosófico - diz ele, que desdobrou seu interesse num curso já iniciado na Casa do Saber, "Rock, a cultura no limite", sobre quatro rockstars suicidas: Kurt Cobain, Ian Curtis, Elliott Smith e Nick Drake.

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O título do livro veio de um verso de "Construção", de Chico Buarque, porque Dapieve acha a letra ambígua, sem explicitar se o operário que "morreu na contramão atrapalhando o tráfego" era um suicida.

Dapieve constatou que existe uma reserva da imprensa em noticiar casos de suicídio por medo do efeito multiplicador que a divulgação pode ter, mas ele aceita a ponderação de que o mesmo poderia se aplicar ao noticiário policial, por exemplo.

- Sim, esta é uma questão pertinente: se noticiamos tantos homicídios sem medo de eles estimularem alguém a matar, por que tememos que, ao noticiar suicídios, estaremos estimulando alguém a matar a si próprio? OK, existe um histórico de suicídios, por assim, "de imitação". Mas será que também não existem homicídios "de imitação"? Será que a profusão de filmes violentos, por exemplo, não excita a violência? Não tenho a resposta, mas acho lícito pensar isso.

Os suicídios de imitação têm exemplos históricos e Dapieve cita alguns no livro com uma observação irônica sobre "o perigoso poder dos livros".

- O histórico se tornou mais notável com o 'Werther', de Goethe, do final do século 18. A história do jovem Werther que se mata por não ver correspondido seu amor por Charlotte é arquetípica e, por isso, muitos jovens se mataram após ler o livro. De certa forma, Goethe deu um marco zero ao Romantismo. Não acredito que livros ou filmes ou discos possam induzir alguém a fazer algo que já não estava disposto a fazer. Eles podem, no máximo, colocar-nos para matutar a idéia.

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A Igreja e o estado sempre execraram o suicídio porque o indivíduo fugia do controle das instituições ao se matar, mas, no caso da Igreja, a fé consagra o martírio, o próprio Cristo veio para morrer e o tão execrado e suicida Judas foi apenas o instrumento desta missão.

- Uma heresia medieval dizia que Judas era o verdadeiro messias, porque, sem ele, não teria havido a redenção de Jesus e a mensagem não teria sido dada. 'A última tentação de Cristo' é um pouco derivada dela. Mas, sem sombra de dúvida, o comportamento dos mártires do cristianismo é suicida, no sentido de se entregar à morte certa em nome de sua missão. Nisso, Jesus teria sido o primeiro da fila. A própria igreja passou seus primeiros três séculos estudando esta possibilidade. Depois, definiu que o martírio era um "chamado especial" de Deus e proscreveu de vez o suicídio. Além disso, qualquer religião que sustenta que isso aqui é um vale de lágrimas faz um elogio da morte.

A morte de Jesus poderia ser um suicídio altruísta na classificação do sociólogo francês Émile Durkheim (1858 - 1917), uma das principais referências de Dapieve, por ter sido um instrumento de salvação da humanidade.

Da mesma forma o suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954, um gesto altruísta em alegada defesa do povo, a morte voluntária como um instrumento político

- Foi isso. A carta testamento é uma profecia auto-realizável: ele entra na história no próprio ato de se matar por ela. Foi uma jogada política mórbida, claro, mas brilhante, afora o fato de a carta em si ser uma peça de alta literatura suicida, bonita à beça. Além disso, com seu gesto, ele adiou o golpe militar então já iminente por dez anos e meio que apagou o próprio passado como ditador militar. Não é pouca coisa.

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