Nascido na Líbia, o italiano Annibale Fantoli é mestre em Filosofia e Teologia, e doutor em Física e Matemática. Depois de passar décadas estudando o processo de Galileu, lançou na década de 1990 o livro que acaba de ganhar uma edição brasileira. Fantoli concedeu a seguinte entrevista, por e-mail, à Gazeta do Povo:
Como o senhor vê a caracterização do caso Galileu como o exemplo mais acabado do conflito entre fé e ciência?
Não aceito a ideia de um embate inevitável entre ciência e fé, como se ele estivesse representado no caso Galileu. Por isso coloquei no livro o título Pelo copernicanismo e pela Igreja, para mostrar que, para o próprio Galileu, esse choque estava longe de ser inevitável. O objetivo de meu livro é mostrar por que, infelizmente, aconteceu esse conflito. Foi o resultado da enorme dificuldade de aceitar uma nova visão de mundo que contrastava radicalmente com a visão então aceita, que tinha uma conexão estreita com afirmações da Bíblia. Ansiosa por preservar essa unidade de pensamento, a Igreja Católica se precipitou ao proibir o ensino do copernicanismo em 1616 e, depois, diretamente contra Galileu em 1633. Foi um erro, como João Paulo II admitiu em 1992.
Antes das cartas de Galileu a Benedetto Castelli e Cristina de Lorena, que sucesso tiveram outras tentativas de interpretar a Bíblia de forma não-literal?
Santo Agostinho já havia feito isso, como demonstro em meu livro, e durante o período escolástico Santo Tomás de Aquino e outros teólogos precisaram recorrer a interpretações metafóricas da Escritura em várias situações. Por exemplo, para aceitar (como eles fizeram) a cosmologia aristotélica, que se opunha a uma visão de mundo segundo a literalidade da Bíblia. Quanto ao copernicanismo, havia teólogos que não o consideravam contrário à Escritura, como o espanhol Diego de Zuñiga e o italiano Foscarini. Entretanto, a Igreja, afastando-se da mente mais aberta dos teólogos medievais, mostrou na época de Galileu uma aderência mais estrita às interpretações literais. Sem dúvida, isso também foi resultado da disputa com os protestantes, que negavam o primado do Papa como líder da Cristandade argumentando que ele não tinha base na Bíblia, lida de modo literal. Para refutar essa alegação, teólogos católicos (como Bellarmino, que teve um papel importante no caso Galileu) foram obrigados a mostrar que o significado literal da Bíblia, pelo contrário, favorecia o primado papal. Assim, a interpretação literal da Escritura se tornou uma condição para a ortodoxia.
Seu livro derruba mitos propagados tanto por apologistas católicos quanto por militantes anticatólicos. Que lado está mais frequentemente enganado a respeito? Quais os mitos mais comuns sobre o caso Galileu, entre estudiosos e o público comum?
Mal-entendidos sobre o caso Galileu são comuns de ambos os lados, mas talvez o lado anticatólico seja o mais equivocado, por causa dos fortes motivos ideológicos que influenciam sua visão dos fatos históricos. Os anticatólicos tendem a reconstruir o caso Galileu na presunção básica do embate inevitável entre ciência e religião. Entre os católicos, a vontade de defender a Igreja acaba levando alguns deles a distorcer alguns fatos históricos.Quanto aos mitos, um exemplo claro disso é a suposta tortura de Galileu, entre os anticatólicos. Do outro lado, eu mencionaria o mito de Galileu como único responsável por sua condenação, por causa de seus defeitos de caráter e de sua pretensão de ter provas irrefutáveis do heliocentrismo provas que, de fato, ele não tinha.
Poderíamos dizer que no caso Galileu não há mocinhos nem bandidos?
Exatamente. A parte triste da história é que, exceto por alguns casos(como a acusação de Caccini a Galileu em 1615, feita de muita má-fé), a maioria das pessoas teólogos, cardeais e até os papas agiu com boa intenção. Isso foi muito enfatizado pelo cardeal Paul Poupard em 1992, num discurso que antecedeu o de João Paulo II, já mencionado por mim. Infelizmente, grandes erros podem ser cometidos em nome da melhor das intenções. (MAC)
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