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Em uma das cenas mais dramáticas de A Liberdade É Azul, a protagonista Julie (Juliette Binoche) tenta aplacar a dor da perda do marido e da filha em um acidente de carro recorrendo a um ato extremo e autodestrutivo: arranha, até sangrar, os dedos da mão em um muro de pedra, áspero e frio como a vida (ou a própria Europa). Tem esperança, em vão, que o suplício físico a faça esquecer, nem que seja por alguns minutos, o desespero existencial, o vazio que a corrói depois da tragédia que se abateu sobre sua vida.

Esse pequeno fragmento do filme, ainda mais diminuto frente à envergadura quase épica da A Trilogia das Cores, concentra de forma emblemática muitos elementos essenciais à obra do cineasta polonês Krzysztof Kieslowski. Está lá a faceta católica do diretor, para quem o sacrifício físico pode purgar tanto o sofrimento da perda quanto a culpa de personagem de ter sido a única sobrevivente de uma tragédia. Esse dilema, além de seu cunho religioso, é também moral, porque Julie, do fundo de seu desespero, não consegue compreender que direito pode ter à vida se as pessoas que mais amava, sobretudo a filha, foram privadas do direito de continuar existindo. Não lhe parece justo.

Por último, Kieslowski também explora um território onipresente em sua obra: a solidão do indivíduo, muitas vezes incompreendido, frente a um mundo hostil e indiferente a sua dor, que a qualquer momento pode privá-lo do direito à felicidade. Essa mesma idéia é discutida em Não Amarás, cujo protagonista, um jovem carteiro solitário numa Polônia ainda comunista, apaixona-se à distância por uma mulher mais velha, que mora em um edifício defronte ao seu e revela-se tão isolada do mundo quanto ele. A impossibilidade desse amor, confundido por ela com obsessão patológica, o leva a tentar o suicídio.

De uma certa forma, o juiz aposentado vivido por Jean-Louis Trintignant em A Fraternidade É Vermelha também é, no fundo, um resto humano, como Julie e Tomek, o carteiro de Não Amarás. Para matar o tempo, ou aplacar seu desejo de contato humano, ainda que seja de forma clandestina, ele invade a privacidade alheia, instalando escutas telefônicas. O personagem, que deveria encarnar o ideal de Justiça, recorre a um ato ilícito para sobreviver frente à indiferença profunda dos outros.

Desde o lançamento de A Trilogia das Cores, a realidade na Europa se transformou – e não, necessariamente, em direção do idealizado por Kieslowski. A tão sonhada união, presente até certo ponto no âmbito comercial e econômico, não venceu outras fronteiras, como os nacionalismos, o preconceito racial, a incomunicabilidade crescente.

Se já não há o Muro de Berlim e a Cortina de Ferro, as barreiras, ainda que menos visíveis, continuam existindo, pulsantes. O que torna, ironicamente, os filmes de Kieslowski ainda mais atuais. A julgar pelos ataques terroristas em Madri e Londres, ou os violentos incidentes nas periferias de Paris e de outras cidades francesas no ano passado, liberdade, igualdade e fraternidade ainda são valores na maior parte das vezes utópicos em um continente onde a incapacidade de aceitação da diferença trêmula ao vento para quem quiser ver.

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