Cena cotidiana na periferia de Harare, capital do Zimbábue: a África é muito pouco conhecida no Brasil, apesar da proximidade geográfica e cultural| Foto: Philimon Bulawayo/Reuters
O veterano polônês Ryszard Kapuscinski, ídolo do jovem Zanini
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Entrevista com Fábio Zanini, jornalista e autor do livro Pé na África

Grande ídolo e inspiração de Fábio Zanini, jornalista da Folha de São Paulo que desde o ano passado mantém o blog Pé na África e acaba de lançar um livro homônimo (Publifolha), o polonês Ryszard Kapuscinski inicia o monumental Ébano (Cia. das Letras) com um aviso: "Vivi na África durante vários anos. (...) Viajei muito. Evitava os caminhos oficiais, palácios, pessoas importantes e a alta política. Gostava de viajar de carona em caminhões, peregrinar com os nômades pelo deserto, me hospedar com os camponeses das savanas tropicais". E prossegue: "Portanto, este não é um livro sobre a África, mas sobre algumas pessoas que lá encontrei e com as quais passei algum tempo". Foi no mesmo espírito de seu inspirador que Zanini percorreu 13 países e quase 30 cidades do sul ao norte da África, em quatro meses e meio.

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Ainda que, pautado pelo jornal para o qual trabalha, tenha acabado se desviando da rota original para cobrir uma visita de Lula a Gana, o resultado da jornada saiu mesmo mais para as descobertas de um peregrino, de um escritor-viajante à maneira de Kapuscinski, do que para as impressões de um jornalista, que tem sempre a obrigação de relatar os fatos no calor da hora.

Pé na África vem se juntar aos poucos relatos escritos em português sobre, segundo Zanini na entrevista a seguir, uma parte do mundo "muito pouco conhecida no Brasil, apesar de nossa proximidade geográfica e cultural". Passou batido por aqui, por exemplo, o incrível Baía dos Tigres (Sá Editora), do português Pedro Rosa Mendes, relato de sua travessia – a pé – por zonas de guerra em Angola, onde a seleção de futebol de Togo sofreu, há poucos dias, um atentado que só a complexidade fascinante do continente, destrinchada em livros como os de Kapuscinski, Zanini e Rosa Mendes, pode explicar.

Hoje – com o mundo ao alcance de um clique, para usar o clichê predileto dos entusiastas da navegação, mas virtual – ainda faz sentido aguardar que algum escritor de talento pegue a estrada para podermos ler suas impressões de viagem?

Para mim, sim, faz muita diferença. A internet é um instrumento precioso, mas nada substitui as impressões colhidas in loco, o relato do contato humano e a dimensão emocional que apenas a presença física permitem. Eu considero o jornalista que viaja e conta o que viu um mediador indispensável até para situar melhor o leitor e ajudá-lo a fazer suas escolhas.

O que, para você, deveria ser desde o começo o diferencial do blog, e mais tarde do livro, em relação a outros relatos sobre a África?

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O principal, para mim, sempre foi fazer um relato em tempo real de experiências em lugares pouco explorados pela mídia brasileira. Minha preocupação, na medida do possível, foi tentar levar o leitor "junto" comigo na viagem, em vez de fazer uma ou outra grande reportagem. O blog, nesse sentido, é uma ferramenta única, que permite esse acompanhamento. O livro tem o mesmo DNA, pois é uma ampliação do blog.

Você não sentiu, em algum momento, o peso de ter atrás de si uma longa linhagem de grandes escritores e repórteres que já haviam escrito sobre o continente africano, como Ryszard Kapuscinski e seu clássico Ébano: minha vida na África, para citar apenas um?

Sim, e Kapuscinski é o maior deles. É, para mim, o mais importante jornalista do século 20, apesar de um tanto menosprezado (possivelmente pelo fato de ter sido polonês). Os relatos dele e de outros (como Paul Theroux) foram um empurrão para que eu criasse esse projeto, em primeiro lugar. Eu sempre soube que jamais chegaria no nível de detalhes deles, porque são gênios difíceis de imitar. Procurei neles uma constante fonte de inspiração.

Por que o Brasil tem tão poucos autores dedicados à literatura de viagem? Destes, você tem algum predileto?

Não sei explicar muito o motivo, mas penso que o jornalismo brasileiro tem uma fixação muito grande com questões domésticas (política, economia), dado nosso contexto histórico. O jornalismo internacional no Brasil é muito pouco desenvolvido. E quando é, limita-se aos EUA, Europa e América Latina. Há pouco espaço para a África. É algo tão pobre que não consigo citar ninguém de destaque.

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E entre os clássicos estrangeiros da literatura de viagem?

Os de Kapuscinski. Além de Ébano, já citado, foram muito importantes para mim O Imperador(Cia. das Letras) e Outro Dia na Vida (sem tradução no Brasil).

Por que, ao resolver botar o pé na estrada e escrever um blog/livro, você – como, aliás, a maior parte dos poucos autores brasileiros que se dedicam a livros de viagem – não escolheu viajar pelo imenso território do seu próprio país?

É uma escolha pessoal essa, muito em função de um caminho que minha vida tomou. Eu fui muito influenciado pelo mestrado que fiz na Soas (School of Oriental and African Studies), da Universidade de Londres, em 2003 e 2004, que foi bastante focado em estudos do Terceiro Mundo. Eu sempre tive uma fascinação pelo mundo pobre, porque acho que jornalisticamente é muito mais interessante. São locais em que tudo ainda está acontecendo com grande velocidade, tanto para o bem (eleições, democratização, novos líderes que surgem) quanto para o mal (guerras, fome). Minha vida tomou esse rumo, e a África acabou sendo uma decorrência natural. Até porque é muito pouco conhecida no Brasil, apesar de nossa proximidade geográfica e cultural.

No prefácio do livro, você conta que, como mochileiro, já havia visitado 60 países em todos os continentes quando iniciou essa viagem mais recente e planejada pela África. E em outro momento, no passeio a uma cachoeira, relata que chegou a sentir como perda de tempo estar ali "apenas como turista". Você, afinal, também faz turismo ao viajar para esses lugares todos? Ou sempre buscou algo mais?

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Eu quis misturar as duas coisas. Eu queria dar um panorama grande da África, e que tivesse um apelo grande para os leitores. Sem dúvida, escrever sobre turismo era fundamental. Falar apenas sobre política e sociedade poderia ser muito áspero. Era preciso mesclar. Nesse exemplo das cataratas, foi um momento de uma certa depressão pós-parto, porque eu havia passado 20 dias "adrenalizado" no Zimbábue – num momento muito importante do país, e vencendo o medo de estar ali ilegalmente –, e de repente me vi circulando entre ônibus de turistas cinco estrelas. Mas eu procurei fazer um pouco de tudo.

Houve algum fato ou episódio que você não pôde (ou não conseguiu, nem no calor da hora, nem depois) contar no blog e no livro? Já dá pra contar?

Algumas coisas eu não contei no blog, principalmente no Zimbábue, mas estão no livro. O livro conta tudo, não poupei nada ao leitor (nem a história da misteriosa infecção que peguei nas partes baixas).