Há ao menos dois grandes riscos ao escrever um perfil de Dalton Trevisan. O primeiro é cometer o “jornalismo de tocaia”; persegui-lo pelas ruas do bairro em que mora em Curitiba para então descrever o episódio, inchando-o com notas biográficas e “aspas” de escritores e acadêmicos que já estudaram a obra do contista.
Mesmo que o autor que completa 90 anos neste domingo (14) tenha passado os últimos 50 dizendo que despreza esse tipo de armadilha, ainda há quem não resista à tentação de fazê-lo.
O segundo é a repetição de uma fórmula que está “no ar” há pelo menos 50 anos: amigos e inimigos mais ou menos próximos relatam impressões e episódios da convivência com Dalton e, entre ressentimentos e declarações de amor, reforçam o mito do “Vampiro”.
A Mão na Pena
Hoje que lanço a mão na pena, me diga se você já sentiu a picada de uma abelha-de-fogo. O beijo fatal na nuca
Leia o conto de DaltonPode haver outros ainda mais graves como tentar reproduzir a melodia violenta de seu texto num pastiche ordinário, que diz muito sobre quem o comete.
Diante de tantos senões alguém pode dizer que este texto jamais deveria ser escrito. Talvez. (Dalton certamente pensa assim.) No entanto, e sem querer ensinar o padre-nosso ao vigário, alguns temas se impõem no dia em que o contista mais importante do país entra para o improvável clube de 1% da população brasileira que é nonagenária (desse porcentual, menos de 1% ainda trabalha normalmente, segundo o IBGE).
Primeiro e mais óbvio é a longevidade de seu protagonismo literário. Semanas atrás, parte do mundo comemorou os 70 anos da vitória dos aliados na Segunda Guerra. Sabe-se que Dalton acompanhou o armistício recuperando-se de um acidente, mas já formado em Direito, e que começava a se tornar uma figura central da rarefeita vida cultural de Curitiba.
Em 1946, em abril, começou a editar a revista “Joaquim”, trincheira de onde iria atacar o paranismo beletrista e cafona da província. Sua importância como jovem contestador literário e estético se reproduziu de forma imediata em escala nacional.
O contista só apareceria algum tempo depois, mas foi nessa época que Dalton forjou seu universo literário. Ele cresceu na Curitiba da década de 1930, uma cidade de 100 mil habitantes com hábitos, costumes e leis do século 19. Não é exagerado supor que Dalton tenha convivido com sujeitos que usavam monóculo ou que tenha ido a um baile em que ainda se tocava o charleston. É a Curitiba dos anos 1930 que Dalton recria em seus textos desde então. Até aqui, tudo bem.
O que impressiona é que ele continue, na definição de Luís Henrique Pellanda, colunista da Gazeta do Povo, “inconfundível, intransferível, incontornável e irresistível” até hoje, quando se vê a era do sertanejo universitário e do hip-hop “noiado” das periferias de uma cidade pós-milagre lernista. Uma cidade que inchou 20 vezes, passando para 2 milhões de habitantes.
Na medida em que a cidade cresceu, os textos de Dalton encolheram, na busca obsessiva pela concisão extrema. “Dalton escreve mais, menos e melhor com o passar do tempo”, diz um amigo. Em mais textos, com menos palavras, ele conseguiu melhor que ninguém captar as mudanças, as sutis e as nem tanto, pelas quais a cidade passou, incluindo as escuras e sangrentas esquinas de nossa periferia, ao aliar a alma de repórter policial à de ficcionista revolucionário.
Outro amigo tentou sintetizar sua importância com o seguinte raciocínio: “Nunca um escritor tão grande esteve tão presente por tanto tempo em um universo literário tão pequeno como acontece com Dalton e Curitiba”. Nem a presença claustrofóbica de Jorge Luis Borges na Argentina seria tão impactante como a que a genialidade internacionalmente reconhecida de Dalton provoca em sua cidade natal, de onde saiu uma única vez.
O autor de “Pico na Veia” fez uma única e rápida viagem para a Europa no ano de 1950, ao contrário de um de seus ídolos, Machado de Assis, que nunca deixou o Rio de janeiro.Mais importante do que tentar descobrir por onde andou e o que fez Dalton por lá, é exercitar a imaginação: o que seria de Curitiba se Dalton tivesse resolvido não voltar? Como teríamos vivido sem sua presença nos últimos 60 anos?
É curioso como os livros de Dalton despertam uma espécie de orgulho cívico até em quem nunca o leu. Nisso, a Curitiba que vive em sua obra lembra a pequena vila de Cornish, em New Hampshire (EUA), onde outro escritor genial e recluso, J.D. Salinger (1919-2010), viveu até o fim da vida.
Os moradores de Cornish não apenas respeitavam o cotidiano de Salinger, como o protegiam de peregrinos literários, jornalistas, chatos de plantão e malucos que batiam à sua porta. “Mesmo recluso e com suas idiossincrasias, vejo Dalton mais como um sol na eterna meia-noite de nossa insignificância do que como essa figura vampiresca. Nós é que nos aproveitamos dele”, conclui outro amigo.
Da longevidade surge outra constatação espantosa: o auge de sua literatura tem construção recente, impresso em livros inéditos ou refeitos para a editora Record nos últimos 20 anos. (Ao menos para mim e, ao que parece, para o próprio Dalton.) Essa é uma fase de prêmios, boas vendas e encantamento da crítica mundial.
Nunca um escritor tão grande esteve tão presente por tanto tempo em um universo literário tão pequeno como acontece com Dalton e Curitiba.
Diretor da Mardluce Editora, que publicou a tradução argentina de “A Trombeta do Anjo Vingador”, Damián Tabarovsky diz que está em curso um redescobrimento de Dalton no país platino. “O livro teve uma grande recepção na crítica argentina e muitos leitores, jovens em especial, estão se maravilhando com sua obra”, diz o editor.
Em contos escritos e reescritos depois dos 70 anos com poucas linhas devastadoras, Dalton consegue falar “mais, menos e melhor” com um público mais interessado em sua obra do que em sua persona. Não é pouco.
Quanto à figura do vampiro, que o próprio autor, a imprensa e o público ajudam a cultivar há anos, ela serve mais para fins promocionais ou para mantê-lo livre dos “muitos achaques”, ou ainda para preservar o autor de sua timidez, característica de sua personalidade que todos os amigos confirmam.
Ao lado do bom humor, do gosto pela conversa, da admiração por filmes americanos dos anos 1940 e 1950, e do paladar para chás. E isso tudo importa para alguém? Não deveria.
“Só a obra interessa. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista”, ele mesmo já disse. Para outro amigo, que convive com o escritor há anos na pequena Cornish que vai da Praça Osório ao Alto da Glória, parte da reclusão de Dalton tem outra natureza. “Assim como nunca quis dividir seu sucesso, reconhecimento e glória com a cidade, ele nunca pediu que ninguém chorasse por ele quando sofreu agruras. O nome disso é elegância”, diz.
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