Alex Ross: façanha de transformar o erudito em acessível| Foto: David Michalek/ Divulgação

"Odeio ‘música clássica’: não o gênero, mas o nome. Ele captura uma primorosa forma de arte ainda viva e a transforma em um parque temático do passado. Ele aniquila quaisquer possibilidades de que a música nos moldes do que foi feito por um gênio como Beethoven ainda possa ser criada nos dias de hoje. Degreda o trabalho de milhares de compositores ativos que têm de explicar para pessoas outrora bem informadas como é exatamente que eles ganham a vida. O próprio termo em si já é uma pérola da propaganda negativa, um anti-hype. Quando as pessoas ouvem ‘clássica’, elas automaticamente pensam ‘morta’, assim como presume-se que seja seu público: um apanhado de brancos ricos, moribundos e entediados. Quisera eu que houvesse outro nome."

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Esse desabafo foi feito pelo colunista de música erudita da revista The New Yorker, Alex Ross, naquele que ficou conhecido como um de seus melhores textos até então, intitulado "Listen to This" ("Ouça Isso"), publicado no dia 16 de fevereiro de 2004. Nele, Ross ridiculariza a pose do apreciador de "música clássica" mediano que reconhecidamente considera qualquer outro gênero musical pura e simplesmente um lixo e desabafa sobre o fato de ver o gênero refém de um culto do que ele chama de "elitismo medíocre que tenta fabricar auto-estima através de uma pseudo-superioridade intelectual".

Não se trata, portanto, de mais um crítico de música erudita disposto a soar propositalmente inacessível. Ross lançou por aqui o seu primeiro livro, O Resto É Ruído, projeto sobre o qual vinha pesquisando exaustivamente (e com absurda minúcia) desde os tempos em que escrevia sobre música para o jornal The New York Times em meados de 1992: um livro que contasse detalhadamente a história da música erudita moderna ao longo do século 20, investigando, através das correlações da música com outras formas artísticas, qual foi precisamente o legado musical de cada grande período da história desse século. E vale aqui considerarmos seu trabalho. Escrever especialmente sobre um gênero que, em pleno século 21, mais parece uma diva caquética em interminável turnê de despedida. Não só isso, mas escrever sobre a importância da música em uma época em que corremos o risco de ficar saturados de ouvi-la ou de nos tornarmos incapazes de distinguir aquilo que é relevante. Basta considerarmos a popularidade dos tocadores de mp3 e a ampla disponibilidade de músicas na rede, o fato de cada restaurante, casa noturna ou loja de departamentos ter sua própria seleção tocando continuamente, os infinitos gêneros e subgêneros que se multiplicam num piscar de olhos, cada país e sua música típica, cada idade e seu público alvo. Impossível passarmos um dia inteiro no mundo civilizado sem sermos bombardeados por algum tipo de música.

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No entanto, o que faz do livro de Ross uma peça singular é o fato de ele acreditar piamente que nunca se ouviu tanta música de modo tão apaixonado com se ouve atualmente. Ele se diz convencido de que o garoto com fones de ouvido estourando sentado em seu quarto presta muito mais atenção na música que escuta (ritmo, letra, sensações que ela causa), do que aquele casal de aristocratas vestindo smoking e fingindo ter uma experiência enquanto a filarmônica se apresenta. E é para esse garoto que ele escreve.

Porque em sua opinião, se não existem mais pessoas ouvindo música clássica, é tudo culpa da elite pedante que a usa como pedestal – podem culpar a mídia, a cultura de massa, até a genética – os algozes são eles mesmos. E não adianta recorrer à máxima de que o gênero está com sepultamento agendado – a morte do clássico vem sendo alardeada desde o século 14 quando a Ars Nova surgiu e as pessoas não a entenderam.

Em 1862, August Wilhelm Ambros já proclamava o fim alegando que a modernidade simplesmente não possuía o mesmo espírito criativo das épocas anteriores. E isso foi quando Wagner escreveu uma de suas obras-primas, "Tristan". Também Honeg­ger, nos anos 1950, profetizava acerca do fenecimento, afirmando a mesmíssima coisa. Bem diante de seus olhos, Copland explodia.

A análise que o autor faz desse tipo de negativismo é que qualquer pensamento apocalíptico com relação à música (e que pode ser aplicada a qualquer outra forma de arte) é puramente pessoal. Veja a coincidência que esse ou aquele gênero está por acabar justamente quando o crítico X começa a envelhecer. Ross parece dizer que uma das lições mais interessantes da vida é que nada dá errado – ainda que não aconteça o que esperamos.

A verdadeira desvantagem da música clássica diante das novas tecnologias é que ela nunca realmente funcionou em alto-falantes ou gravações. Ela não consegue competir com outros gêneros não porque seja difícil, mas porque não foi mixada para se encaixar com o espaço urbano. Ele credita muito do dano causado contra o gênero ao que foi feito com ele nos anos 1930 e 40, quando as obras eram usadas apenas para desencadear certas imagens arquetípicas no cinema: Betty Davis descendo as escadas aos prantos, Errol Flynn desembainhando sua espada, tudo ao som de um pós-Wagnerismo enlatado, que, com o passar dos anos, foi soando cada vez mais tolo e datado para as novas gerações. Para Ross, qualquer tipo de música passa a ser menosprezada e incapaz de surpreender quando seu único propósito passa a ser promover certo ambiente ou desencadear reações específicas.

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O autor especula sobre a história da música dentro de cinco estágios de um ciclo que perdura – Clássico, onde as regras para composição são estabelecidas (Mozart, Armstrong, Chuck Berry), Romântico, onde a música torna-se orquestral e ambiciosa (Wagner, Led Zeppelin), Modernista, quando a vanguarda rejeita a burguesia sonolenta (Schoenberg, Charlie Parker, Sex Pistols), Pós-Modernista, quando a vanguarda abandona o apelo de massa (Boulez, Cecil Taylor, Aphex Twin), e o Neoclassicismo, quando os conservadores tentam voltar no tempo e retomar a ordem (compositores Neo-Românticos, Wynton Marsalis, Strokes).

O que fica evidente é que os fundamentos da música clássica sempre evoluem, até mesmo o aspecto notório que permanece central na sua própria definição – escrever música para que outros a toquem – tem sido desafiado e melhorado continuamente pelas improvisações. E é essa definição que aproxima o clássico do popular: o fato de que o conceito de qualquer estilo são suas influências e o modo pelo qual elas são absorvidas e melhoradas.

A grande façanha de Ross em O Resto É Ruído não é discorrer sobre os relatos fascinantes que conduziram a música através do século 20, mas transformar o erudito em acessível e prazeroso para qualquer um que se interesse por música, seja ela de que estilo for. O garoto dos fones de ouvido agradece.

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Serviço

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O Resto É Ruído, de Alex Ross. Companhia das Letras, 679 pág., R$ 64.

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