Montagem de Esperando Godot realizada em 1993, na França, com direção de Philippe Adrien| Foto: Divulgação

Artigo: No meio do caos de uma guerra

Imagine a seguinte ce­­na: Dois homens, numa sala-de-estar. Silêncio. Longo si­­lên­­cio.

Primeiro Homem: Como po­­deria Hume, um idealista, es­­crever uma História?Silêncio. Longo.

Segundo Homem: Uma his­­tória das representações.

Longo Silêncio.

Primeiro Homem: Para mim só há uma alternativa ao es­­colasticismo: o ceticismo.

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Tentar, falhar e tentar novamente

Com frequência, a obra de Beckett parece do tipo que precisa de um manual de instruções para ser manuseada (e mesmo assim...). Notas de rodapé, prefácios, posfácios, análises, todo tipo de recurso paratextual é usado para tornar seus livros e peças teatrais menos "estranhos".

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"Toda palavra é uma nódoa sobre o silêncio"

Seria difícil de acreditar se não houvesse provas: Samuel Beckett, o mais taciturno e recluso dos es­­critores do século 20 – o ho­­mem que afirmou ser "toda palavra uma desnecessária nódoa sobre o silêncio e o vazio" – produziu, na verdade, um dos mais extensos conjuntos de correspondência pessoal do século.

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Um homem sentado numa caixa com rodas, incapaz de andar, faz amizade com outro, que não enxerga. Os dois vivem na rua, são amargos, odeiam suas situações, mas pensam que podem se ajudar. Aquele que tem visão pode indicar o caminho para o que tem pernas. "Nós somos o par perfeito!", diz o primeiro.

Não é preciso muito para imaginar que os personagens de Rascunho para Teatro I representam anseios que qualquer um pode ter ou teve. Quem nunca se sentiu cego? Ou foi acusado de não enxergar? Ou gostariade ter alguém que indicasse o caminho? A peça escrita por Samuel Beckett dá conta de tudo isso e também é apenas a história de um sujeito que não anda que fica amigo de outro que não vê.

Beckett tinha pavor de explicações. Ao menos das explicações que cobravam dele. O público via as montagens baseadas em seus textos e não entendia patavina. Isso lá pelos anos 1950. O ir­­landês que escreveu em inglês e francês morreu em 1989, aos 83 anos. Seu nome é sempre associado ao teatro do absurdo – de Alfred Jarry (1873-1907) e Eugène Ionesco (1909-1994) –, termo criado para se referir a peças com uma atmosfera surreal e diálogos que parecem sem pé nem cabeça.

Na verdade, não é exatamente surreal. Talvez seja melhor encará-la como real demais. Porque sua obra fala da solidão e do vazio existencial, entrar em contato com ela pode ser uma revelação. Poucos escritores são tão eloquentes sobre o mundo atual quanto o vencedor do Prêmio No­­bel de Literatura de 1969.

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"Dizem que a obra de Beckett é absurda – mas penso que essa ideia, sim, é absurda", diz o escritor José Castello. "Ela penetra a realidade como uma faca e a leva a sangrar. O sangue escorre de nossas entranhas e, em vez de abandonar, aprofunda nossa noção de realidade."

Para o autor de A Literatura na Poltrona (Record), ler Beckett é enfrentar a dor do mundo contemporâneo, marcado por de­­pres­­sões, compulsões e fobias. "Acontece que o vazio (que chamam de absurdo) hoje se tornou escandaloso. Ele nos deixa completamente desamparados: e se expressa no apego contemporâneo às drogas, ao sexo compulsivo, ao fanatismo religioso, ao consumo compulsivo – que não passam de recursos (fracassados) com que enfrentamos o vazio", diz Castello.

Em textos como Esperando Go­­dot, sua obra-prima, o irlandês faz um uso extraordinário de pa­­lavras simples e expressões triviais. "Vamos embora", diz Es­­tra­­gon. "Não podemos", rebate Vla­dimir. "Por que não?", pergunta o primeiro. "Estamos es­­pe­­rando Go­­dot", responde o se­­gundo. "É verdade", se conforma Estragon.

O fato é que Godot não aparece nunca. Numa peça "comum", Go­­dot apareceria, dando um sentido para a longa espera. Como se trata de Beckett, a espera não termina, não tem sentido e, ao mesmo, é a razão de ser da peça. Ten­­taram arrancar do autor uma explicação. Godot seria Deus? (God, em inglês.) Vladimir e Es­­tragon vi­­vem uma situação se­­melhante ao de um exilado, sempre à espera de algo (o retorno para casa, o fim da guer­­ra, etc.) que nunca vem. Beckett preferia di­­zer que não havia explicação al­­guma.

"O momento (presente) é tão solitário quanto as personagens de Beckett", diz o ator Mauro Za­­natta. Ele interpretou Estragon ao lado de Rosana Stavis (Vla­­di­­mir) numa versão marcante de Esperando Godot, apresentada no ano passado no Guairinha. "A atua­­­lidade dos seus textos está na não resposta", afirma o ator.

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"De uma forma ou de outra, a obra de Beckett é atravessada pe­­los discursos modernos: a relação com o bem de consumo, a solidão, a procura de uma essência ou de uma solução para o homem que dizima o outro e a si mesmo", explica o professor da Unicuritiba Benedito Costa Neto.

Para ele, uma obra é atual na medida que permite diversas abordagens. "Beckett é um e­­xem­plo fantástico disso porque permite leituras políticas (o homem frente aos regimes totalitários e aos discursos hegemônicos), psicanalíticas (as doenças modernas), históricas (o homem num mundo atômico, etc.), sociológico (hoje se discute tanto a questão da ambivalência), discursivas, linguísticas...", lista o pesquisador.

"Hoje, se posicionarmos suas obras ao lado de críticos do mundo contemporâneo, como Mu­­­rakami ou Houellebecq, veremos o quanto vivemos – às vezes sem nos darmos conta – situações realmente absurdas", diz Costa Neto, em referência ao japonês Haruki Murakami, de Kafka à Beira-mar, e o francês Michel Hou­­e­­llebecq, de Plataforma.

"Beckett foi capaz de apresentar radicalmente um sentimento de desencontro com o mundo – um sentimento comum na atualidade –, mas fazendo uso de uma linguagem igualmente desconcertante, sem confiar em sínteses ou soluções simplistas", afirma Guilherme Gontijo Flo­­res, professor da Universidade Federal do Paraná.

Neste ano, Beckett teve, finalmente, a sua correspondência publicada em língua inglesa. O primeiro volume de uma série de quatro tem quase mil páginas e abrange a juventude do irlandês que foi amigo de ninguém menos que James Joyce (1882-1941), seu conterrâneo o autor do clássico Ulisses. Em artigo para a Gazeta do Povo, Cae­­ta­­no Waldrigues Galindo fala a res­­peito da ligação dos dois e da influência que Joyce exerceu so­­bre Beckett.

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