Artigo: No meio do caos de uma guerra
Imagine a seguinte cena: Dois homens, numa sala-de-estar. Silêncio. Longo silêncio.
Primeiro Homem: Como poderia Hume, um idealista, escrever uma História?Silêncio. Longo.
Segundo Homem: Uma história das representações.
Longo Silêncio.
Primeiro Homem: Para mim só há uma alternativa ao escolasticismo: o ceticismo.
Tentar, falhar e tentar novamente
Com frequência, a obra de Beckett parece do tipo que precisa de um manual de instruções para ser manuseada (e mesmo assim...). Notas de rodapé, prefácios, posfácios, análises, todo tipo de recurso paratextual é usado para tornar seus livros e peças teatrais menos "estranhos".
"Toda palavra é uma nódoa sobre o silêncio"
Seria difícil de acreditar se não houvesse provas: Samuel Beckett, o mais taciturno e recluso dos escritores do século 20 o homem que afirmou ser "toda palavra uma desnecessária nódoa sobre o silêncio e o vazio" produziu, na verdade, um dos mais extensos conjuntos de correspondência pessoal do século.
Um homem sentado numa caixa com rodas, incapaz de andar, faz amizade com outro, que não enxerga. Os dois vivem na rua, são amargos, odeiam suas situações, mas pensam que podem se ajudar. Aquele que tem visão pode indicar o caminho para o que tem pernas. "Nós somos o par perfeito!", diz o primeiro.
Não é preciso muito para imaginar que os personagens de Rascunho para Teatro I representam anseios que qualquer um pode ter ou teve. Quem nunca se sentiu cego? Ou foi acusado de não enxergar? Ou gostariade ter alguém que indicasse o caminho? A peça escrita por Samuel Beckett dá conta de tudo isso e também é apenas a história de um sujeito que não anda que fica amigo de outro que não vê.
Beckett tinha pavor de explicações. Ao menos das explicações que cobravam dele. O público via as montagens baseadas em seus textos e não entendia patavina. Isso lá pelos anos 1950. O irlandês que escreveu em inglês e francês morreu em 1989, aos 83 anos. Seu nome é sempre associado ao teatro do absurdo de Alfred Jarry (1873-1907) e Eugène Ionesco (1909-1994) , termo criado para se referir a peças com uma atmosfera surreal e diálogos que parecem sem pé nem cabeça.
Na verdade, não é exatamente surreal. Talvez seja melhor encará-la como real demais. Porque sua obra fala da solidão e do vazio existencial, entrar em contato com ela pode ser uma revelação. Poucos escritores são tão eloquentes sobre o mundo atual quanto o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1969.
"Dizem que a obra de Beckett é absurda mas penso que essa ideia, sim, é absurda", diz o escritor José Castello. "Ela penetra a realidade como uma faca e a leva a sangrar. O sangue escorre de nossas entranhas e, em vez de abandonar, aprofunda nossa noção de realidade."
Para o autor de A Literatura na Poltrona (Record), ler Beckett é enfrentar a dor do mundo contemporâneo, marcado por depressões, compulsões e fobias. "Acontece que o vazio (que chamam de absurdo) hoje se tornou escandaloso. Ele nos deixa completamente desamparados: e se expressa no apego contemporâneo às drogas, ao sexo compulsivo, ao fanatismo religioso, ao consumo compulsivo que não passam de recursos (fracassados) com que enfrentamos o vazio", diz Castello.
Em textos como Esperando Godot, sua obra-prima, o irlandês faz um uso extraordinário de palavras simples e expressões triviais. "Vamos embora", diz Estragon. "Não podemos", rebate Vladimir. "Por que não?", pergunta o primeiro. "Estamos esperando Godot", responde o segundo. "É verdade", se conforma Estragon.
O fato é que Godot não aparece nunca. Numa peça "comum", Godot apareceria, dando um sentido para a longa espera. Como se trata de Beckett, a espera não termina, não tem sentido e, ao mesmo, é a razão de ser da peça. Tentaram arrancar do autor uma explicação. Godot seria Deus? (God, em inglês.) Vladimir e Estragon vivem uma situação semelhante ao de um exilado, sempre à espera de algo (o retorno para casa, o fim da guerra, etc.) que nunca vem. Beckett preferia dizer que não havia explicação alguma.
"O momento (presente) é tão solitário quanto as personagens de Beckett", diz o ator Mauro Zanatta. Ele interpretou Estragon ao lado de Rosana Stavis (Vladimir) numa versão marcante de Esperando Godot, apresentada no ano passado no Guairinha. "A atualidade dos seus textos está na não resposta", afirma o ator.
"De uma forma ou de outra, a obra de Beckett é atravessada pelos discursos modernos: a relação com o bem de consumo, a solidão, a procura de uma essência ou de uma solução para o homem que dizima o outro e a si mesmo", explica o professor da Unicuritiba Benedito Costa Neto.
Para ele, uma obra é atual na medida que permite diversas abordagens. "Beckett é um exemplo fantástico disso porque permite leituras políticas (o homem frente aos regimes totalitários e aos discursos hegemônicos), psicanalíticas (as doenças modernas), históricas (o homem num mundo atômico, etc.), sociológico (hoje se discute tanto a questão da ambivalência), discursivas, linguísticas...", lista o pesquisador.
"Hoje, se posicionarmos suas obras ao lado de críticos do mundo contemporâneo, como Murakami ou Houellebecq, veremos o quanto vivemos às vezes sem nos darmos conta situações realmente absurdas", diz Costa Neto, em referência ao japonês Haruki Murakami, de Kafka à Beira-mar, e o francês Michel Houellebecq, de Plataforma.
"Beckett foi capaz de apresentar radicalmente um sentimento de desencontro com o mundo um sentimento comum na atualidade , mas fazendo uso de uma linguagem igualmente desconcertante, sem confiar em sínteses ou soluções simplistas", afirma Guilherme Gontijo Flores, professor da Universidade Federal do Paraná.
Neste ano, Beckett teve, finalmente, a sua correspondência publicada em língua inglesa. O primeiro volume de uma série de quatro tem quase mil páginas e abrange a juventude do irlandês que foi amigo de ninguém menos que James Joyce (1882-1941), seu conterrâneo o autor do clássico Ulisses. Em artigo para a Gazeta do Povo, Caetano Waldrigues Galindo fala a respeito da ligação dos dois e da influência que Joyce exerceu sobre Beckett.
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