Scheller toma chá com paquistaneses, em um vilarejo perto de Mardan, um dos principais centros da ação taleban| Foto: Arquivo pessoal

Em maio de 2008, depois de alguns meses de preparação, cheguei ao Paquistão com o propósito de escrever um livro sobre o país – Viagem à Terra dos Puros, que será publicado pela Editora Globo em meados de 2010. Uma família mu­­çulmana da tribo pachtun concordou em me receber como hóspede em sua casa localizada em Mardan, um dos principais centros da ação taleban na fronteira noroeste do país, próxima à área montanhosa da divisa com o Afeganistão. Na fila da imigração, senti-me mais estrangeiro dos que os demais. Havia três filas, duas delas longas, e uma curta. Fiquei justamente na que tinha umas sete ou oito pessoas, a das exceções. Pelo que eu entendi, as outras filas eram para cidadãos paquistaneses e funcionários da Organização das Nações Unidas (ONU).

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No Paquistão, eu era um estrangeiro. E a diferença entre ser local e ser estrangeiro, no meu primeiro dia, esteve nos detalhes. Quando cheguei à capital paquistanesa, Islamabad, após dois dias e meio de viagem, esperava ficar no saguão do aeroporto por algumas horas antes de seguir no meu voo em direção a Peshawar. Mas isso era impossível: o saguão era uma grande varanda aberta cheia de taxistas tentando sugerir hotéis e disputando acirradamente cada passageiro. Homens vestindo salwar kameez, o traje paquistanês de calça e camisa comprida (até o joelho), formavam uma onda visual uniforme: o corte da roupa era o mesmo; variavam apenas os tons ocre, bege e azul claro de seus uniformes. Perto deles, circulavam um grande número de guardas uniformizados, armados com metralhadoras. Não havia bancos para sentar nem lojas abertas. Eram seis e meia da manhã e a temperatura já passava dos 40 graus.

Quando falei que iria ao Paquistão, me perguntaram se havia ido com algum aparato de segurança. A resposta é não. Cheguei sozinho e logo fiz algo que não se deve fazer nesse tipo de viagem. Cedi à insistência de um homem de inglês claudicante e permiti que ele me levasse a um hotel próximo, mesmo ele não sendo um taxista credenciado pelo aeroporto. O taxistas em questão dirigia um minicarro apertado, de fibra de vidro. Trabalhava em outro emprego à tarde, para colocar os filhos na escola particular. Pareceu não entender quando disse que era do Brasil, mas garantiu-me que as coisas haviam melhorado no país no quesito segurança. "O Paquistão é um país muito seguro agora", afirmou, vendendo o argumento com o máximo convicção.

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Ele me levou a um hotel chamado Heaven (paraíso, em inglês). O preço, equivalente a cerca de US$ 40, não era tão caro quando se leva em consideração que o quarto poderia facilmente abrigar uma família inteira. Havia duas camas king size e um grande sofá de couro na outra ponta, além de um frigobar dos anos 70 com uma garrafa d’água pela metade dentro. Para ajudar a combater o calor, além do ar-condicionado, havia também dois ventiladores de teto. Entretanto, as roupas de cama não haviam sido trocadas, a cortina exalava poeira e o banheiro tinha vazamentos. Fiz o que pude nesta situação: forrei a fronha do travesseiro com uma toalha e adormeci.

Menos de duas horas, porém, a luz se foi. No meio do verão – estação em que a temperatura pode passar dos 50 graus Celsius –, o país enfrentava sucessivos blecautes por conta do baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas. Os cortes de energia funcionavam de maneira diferente conforme a região do país. A maioria das pessoas tinha quatro horas de energia para três horas no escuro. O Hotel Heaven, porém, ficou totalmente sem energia pelo resto de minha estada. Em Islamabad, a luz não voltou até o meio da tarde. O aeroporto operava sem eletricidade, com os sinais luminosos desligados, as balanças de bagagem fora de uso e as pequenas lanchonetes vendendo refrigerantes mornos. Os geradores só abasteciam as esteiras de bagagem e os aparelhos de raio-x.

Minha chegada a Peshawar, onde fui recebido por um membro da família Khan, meus anfitriões, ainda incluiu uma parada no aeroporto de Lahore, que era a antítese do terminal de Islamabad, que é basicamente um galpão com uma esteira de bagagem. Construído em 2003 e inaugurado com pompa pelo ditador Pervez Musharraf, foi todo projetado em estilo árabe. Há um impressionante exército de zeladores para constantemente limpar o que já está limpo. Vestidos com uniformes azuis e comandados por um senhor magro e severo de terninho branco, eles passavam incessantemente panos molhados pelo chão brilhante. Esperei o quanto pude no ar-condicionado, mas tive de me dirigir ao saguão para embarcar para meu destino final. Em Lahore, a área de espera também era uma grande varanda aberta, na qual foram instalados centenas de ventiladores ligados na rotação máxima, o que ainda era insuficiente para aplacar o calor. Em um dos cantos do salão, observei os homens que realizavam uma de suas preces diárias em tapetes dispostos no chão para este fim.

Como estava extremamente can­­sado, e bombardeado por informações novas, comecei a buscar alguma referência conhecida. É uma experiência que eu chamo de "alucinando no Paquistão". Não entendo nenhum dos idiomas falados no país – urdu é a língua nacional, estava em território punjab e me dirigia a uma região pachtun. O cansaço logo me fez inventar a maior parte dos diálogos das pessoas ao meu redor em português. Conversas inteiras ouvidas ao longe e que faziam tanto sentido, até por serem sobre assuntos que eu nunca falaria – como a montagem de um sistema corporativo de informática –, que só poderiam ser fruto de brasileiros perdidos no interior do Paquistão como eu. Entretanto, elas se tornavam criptográficas todas as vezes que chegava perto das pessoas para conferir o que elas realmente estavam falando. Foi naquele mo­­mento que eu me dei conta que, ao menos naquele dia, eu era o único representante verde-e-amarelo no Aeroporto de Lahore. Os diálogos em português eram mesmo fruto da minha imaginação.

E ainda faltavam pelo menos mais três horas para que eu chegasse a Mardan, meu destino final.

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*Fernado Scheller é jornalista.

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