Sobre o armário da cozinha há nove garrafas vazias de guaraná – e das grandes.
O enfeite da parede da sala é um enorme mapa do Brasil. Partituras com músicas de Tom Jobim estão espalhadas pelo estúdio e, na mesa de madeira da sala, descansa uma matéria do Caderno G sobre os 90 anos do compositor francês Pierre Boulez, publicada em março deste ano.
No quintal da casa em que mora, ele cultiva um pé de limão tahiti – quando é época, dá frutas de presente às visitas. É assim, apegando-se às miudezas e à música, que Franklin Dieter, 65 anos, tenta se abrasileirar.
Saxofonista é aventureiro não só na música
Quando Franklin visitou o Brasil pela primeira vez em 2008, já se interessava pela cultura do país
Leia a matéria completaHá um ano e meio o suíço vive na zona rural de Mandirituba, a alguns quilômetros do centro de Curitiba.
Dieter alia o talento nato ao interesse pela tecnologia: toca saxofone como poucos e, com uma mão nas costas, navega por complexos softwares de composição musical em seu Macbook. Tudo no estúdio particular que construiu, onde pode brincar com seus três instrumentos até tarde da noite sem incomodar os vizinhos.
Amigo do percussionista Vina Lacerda, espécie de embaixador musical de Curitiba (foi ele quem apresentou a cidade à cantora Mossa Bildner, referência do jazz underground de Nova York nos anos 1960), o suíço está às voltas com as idiossincrasias curitibanas.
Aos 16 anos escutei John Coltrane pela primeira vez. Aí aconteceu. Não quis mais saber de rock. De repente, Rolling Stones e Beatles ficaram muito suaves.
Tocou no Dizzy Café Concerto recentemente, na companhia dos bambas Glauco Sölter e Sergio Albach e, exigente, criticou a falta de estrutura. Seu desejo por aqui é construir “algo”.
“Ya, Ya! Algo diferente, que misture bossa nova, jazz e música eletrônica”, conta, misturando palavras em espanhol com um português carregado de alemão.
Dieter nasceu em Berna, capital da Suíça. Tinha 16 anos quando o irmão, cinco anos mais velho, emprestou um gravador de um professor de latim. Nele escutou John Coltrane (1926-1967) pela primeira vez. Era logo o disco “Olé” (1961).
Projeto social ensina música de graça
O jazzista é um dos professores de música da Associação Brasileira de Amparo à Infância (Abai), organização não governamental que existe há 36 anos em Mandirituba
Leia a matéria completa“Dum/ dum dum dum/ dum dam dam/ dum”, cantarola, apertando os botões do sax. “Foi muito forte pra mim”, diz o músico. Instantaneamente largou mão de Rolling Stones e The Who e começou a se interessar por gente progressista como os saxofonistas Rahsaan Roland Kirk (1935-1977) e Eric Dolphy (1928-1964) e o pianista Thelonious Monk (1917-1982). Nunca parou. Tem inimagináveis cinco terabytes de músicas em seus arquivos digitais, algo em torno de 250 mil faixas.
O suíço de Mandirituba é autodidata. O pai, alfaiate, ouvia jazz enquanto costurava – o menino ali, sempre atento.
Levanto às 7 horas. Tomo café com pão e cereais. Depois, começo a trabalhar nas composições. Almoço ao meio-dia. Estudo escalas e volto a tocar. Aqui, o bom é que eu posso fazer barulho até tarde.
Já tocava sax quando, nos anos 1970, entrou para a escola de música de Lucerna. Deu o que falar.
Anos depois, se mandou para o Ircam, instituto vanguardista francês que estuda ciência e música eletroacústica. Conheceu alguns brasileiros e comprovou a nossa dita musicalidade, inclusive na maneira de se comunicar.
“Os portugueses falam a mesma língua, mas são muito mais duros do que vocês”, diz. Na década seguinte, o suíço silenciou.
Milagre
Franklin já debulhava o instrumento, mas não podia demonstrar isso na Escola de Artes de Berna (HKB), instituição casmurra onde arranjou emprego. “Me faltava a formação clássica”, explica.
Dieter preparava as aulas para os professores e tocava “clandestinamente”.
Certa vez foi imprimir uma de suas composições, que escreveu “em casa, meio escondido”. O professor Ludwig Wicki, fundador da 21th Century Symphony Orchestra, conhecida por interpretar trilhas sonoras de filmes, quis saber que notas eram aquelas.
Semanas depois, o milagre de Berna: uma obra ousada de Franklin Dieter finalmente chacoalhava os ares clássicos da capital da Suíça. “Ya, Ya.”
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