Nos últimos anos, o pesquisador alemão Frank Usarski a estuda a religiosidade oriental no Brasil. Livre docente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC-SP, Usarski autor das principais obras do campo de Estudos Budistas no Brasil - falou ao Caderno G Ideias sobre a difusão da espiritualidade oriental no Ocidente e seus possíveis efeitos.
O Budismo parece fazer sucesso junto a certos estratos da sociedade, em especial o de certas tradições, como o Zen e o Tibetano. Em sua avaliação, religiões orientais como o Taoísmo ou o Xintoísmo, ou mesmo outras vertentes do Budismo - caso do Budismo Chinês ou o Theravada - têm a mesma chance de chegar e de fazer sucesso em países como o Brasil?
É preciso esclarecer que, em países como Inglaterra e Alemanha, o Budismo Theravada chegou bem antes de correntes como o Zen e o Budismo Tibetano, e que até hoje grupos theravadins representam uma boa porcentagem das instituições budistas desses países. Já o Xintoísmo, como prática religiosa, nunca despertou interesse no Ocidente mas há elementos popularizados aqui que têm pelo menos algumas raízes nele. Isso vale especificamente para os "novos movimentos religiosos" japoneses. Também devemos lembrar que técnicas como shiatsu e reiki, mesmo aplicadas fora de um contexto religioso, "respiram" um espírito que, entre outras fontes, remonta ao Xintoísmo.
Quanto à espiritualidade chinesa vinculada ao Taoísmo, no Ocidente ela geralmente não se articula em formas sociologicamente concretas, mas de maneira difusa. Isso tem a ver com a configuração do próprio Taoísmo que, em dado momento histórico, se diferenciou em duas vertentes, filosófica e religiosa. Só a última tem sido representado por organizações próprias, porém sem aspirações missionárias, pelo menos não fora da China. A respeito do Taoísmo religioso, portanto, não seria oportuno esperar divulgação acentuada entre os ocidentais. A situação do Taoísmo filosófico é diferente. O I Ching e a prática divinatória a ele associada, por exemplo, desempenharam no ambiente contracultural um papel tão importante como o do clássico tibetano Bardo Thodol (O Livro dos Mortos). Ao lado de institutos de yoga, surgiram institutos que passaram a oferecer tai-chi-chuan. Nos anos 1970, a dieta macrobiótica baseada na teoria do Yin e Yang esteve em alta. Talvez o elemento mais instigante em todo esse contexto seja a trajetória da acupuntura no Ocidente. Trata-se de uma dinâmica caracterizável como "ocidentalização do Oriente", pois a prática é frequentemente aplicada no contexto do sistema de saúde moderna e de acordo com a lógica da medicina ocidental. Algo semelhante acontece quando adeptos de artes marciais originalmente chinesas e japonesas abstraem a história e o contexto religioso dessas práticas e as treinam como esportes.
A China consolida cada vez mais sua posição como player econômico global. Em sua avaliação, é possível esperar uma expansão em termos culturais e religiosos?
Quando um país se relaciona com outro, o intercâmbio geralmente é complexo e envolve vários aspectos. Isso, mesmo que um único setor, frequentemente o da economia, seja predominante. Basta lembrar que o interesse econômico global da China coincide com a institucionalização dos chamados "Institutos Confúcio" em todo o mundo. Tais entidades atraem seu público através de uma programação diferenciada, que inclui grupos de aprendizagem de mandarim e cursos sobre a cultura e a história da China. Por outro lado, vale lembrar que o currículo baseia-se nos princípios oficiais do governo chinês: segue a política de um regime comunista que não tem muita simpatia por assuntos positivamente relacionados à religião. Isso é consequência da Revolução Cultural, que tinha como objetivo desenraizar as antigas tradições e substituí-las por conteúdos considerados fundamentais para mudança das mentalidades, promovendo a transformação da sociedade na direção do socialismo ambiente em que não haveria mais motivo para pedir ajuda aos deuses.
Entre 1954 e 1965, a República Popular da China passou por um programa crucial de reeducação dos intelectuais, uma campanha em prol do treinamento no chamado "método concreto", com o objetivo de padronizar a leitura da história conforme a perspectiva marxista. Historiadores da religião que ainda simpatizavam com Confúcio tiveram que "entender" que o suposto grande herói da cultura chinesa era, "na verdade", um representante da classe conservadora de sua época, e que devia ser condenado como reacionário. Era uma fase intelectual opressiva, em que aqueles que não se acostumavam com o novo paradigma eram demitidos e substituídos por colegas cujas publicações indicavam fidelidade para com a ideologia oficial. Poder-se-ia citar outros exemplos, como a ocupação violenta de Tibete e a destruição sistemática da sua cultura profundamente religiosa, ou as medidas drásticas tomadas contra membros da Falun Gong. Diante desses e outros acontecimentos, pode-se concluir que a presença da China e de suas empresas nos países ocidentais não terá grande impacto para a divulgação da sua herança espiritual.
Como você avalia os monges guerreiros chineses de Shaolin? Eles configuram uma espécie de "anomalia" histórica?
A expressão "anomalia histórica" é problemática quando tratamos de uma religião fundada há 2.500 anos, que se dividiu em dezenas de ramos, espalhou-se por toda a Ásia (e depois, pelo mundo) e tornou-se um poderoso fator civilizatório. Ainda mais, se percebermos sua flexibilidade diante de costumes e padrões culturais autóctones. Como tendência, pode-se dizer que o Budismo conquistou os povos da Ásia mediante estratégicas soft, não se opondo às condições encontradas, mas as "budaizando". Nesse sentido, o caso dos monges guerreiros chineses de Shaolin é tão paradigmático como a "budaização" das técnicas marciais japonesas, o ikebana ou as técnicas do cultivo do bonsai.
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