Tradicionalmente, o wuxia não se limita às obras literárias. Ele também se inscreve no imaginário e nos músculos dos praticantes de kung-fu. O que leva, porém, um jovem não chinês a se apaixonar pelos movimentos performáticos do kung-fu?
Jorge Jefremovas é praticante de arte marcial chinesa há mais de trinta anos e proprietário de uma academia de kung-fu e tai-chi-chuan no Centro de Curitiba. Ainda adolescente, em Porto Alegre, conheceu o Shaolin do Norte, estilo clássico da luta. Antes de "encaixar" seu primeiro soco, porém, visitou bancas de revistas e assistiu a filmes chineses. "Meu primeiro contato foi com um guia do tipo kung-fu sem mestre. O livro, aliás, era sobre judô", conta. Mais tarde, se rendeu às ideias embutidas no cinema marcial e, em especial, na série televisiva Kung-Fu, veiculada nos anos setenta. "Além das coreografias de luta, o que me chamava a atenção era a capacidade que os personagens tinham manter a serenidade, mesmo nas piores situações."
Segundo Jefremovas, valores que permitem alguém se conduzir dessa forma fazem parte, de fato, da arte marcial chinesa eles são chamados wude, virtude marcial. Esses valores típicos wuxia incluem a perseverança, a benevolência, o senso de justiça e a coragem. "Essas virtudes podem ser cultivadas na academia, mas isso não depende apenas do professor. Se não houver interesse do aluno, a marcialidade fica restrita ao corpo."
Piedade filial
O advogado Maurelio Peters pratica kung-fu há sete anos. Segundo ele, a aproximação com a arte marcial se deu graças aos fliperamas e aos filmes de Jean-Claude Van Damme. "Foi uma aproximação típica de piá de prédio", ri. "Mais tarde, quando decidi fazer alguma coisa para combater o sedentarismo, optei pelo kung-fu." Ele reconhece como valor central da prática a perseverança, que permite ao aluno avançar para níveis mais complexos de aprendizado. "Além disso, é possível perceber outros valores tipicamente chineses, como a piedade filial, que está no respeito mútuo."
Quem foram os monges de Shaolin?
O Mosteiro de Shaolin é uma das mais sólidas instituições do imaginário transnacional chinês. Seus monges, celebrizados no cinema marcial e na série de tevê Kung-Fu, ficaram conhecidos como combatentes invencíveis. Seu apelo, aliás, advem de uma fusão arquetípica: o monge guerreiro encarna a serenidade associada ao Budismo (o sábio) e a energia relacionada ao jovem (o herói).
Mais do que um fenômeno midiático do século 20, porém, os monges de Shaolin são uma antiga instituição chinesa. Que, por sua natureza contraditória ao abraçar a marcialidade, eles se distanciaram do primeiro preceito budista, que veda a violência , se transformou em um tema saboroso para sinólogos e estudiosos do Budismo.
Em O Mosteiro de Shaolin História, Religião e as Artes Marciais Chinesas (recém-publicado no Brasil), Meir Shahar, professor das universidades de Tel Aviv e Harvard, desvenda esse enigma. Para tanto, acompanha a trajetória dos monges entre as dinastias Sui (581-618 d.C.) e Qing (1644-1911).
Batismo de fogo
Mais do que um fenômeno da cultura wuxia, observa Shahar, esses personagens existiram e estiveram associados desde cedo a disputas políticas e à marcialidade. Shaolin foi fundado em 495, e ganhou notoriedade como berço do Budismo Chan (Zen) na China. O primeiro relato de participação de seus monges em um conflito data de 618, na transição das dinastias Sui para Tang. Por estar situado junto à única rota de acesso do litoral à capital imperial chinesa do período, Luoyan, na província de Henan, o mosteiro acabou envolvido na guerra pelo poder; destacou tropas de monges que apoiaram Li Shimin, comandante militar que viria a se tornar o imperador Taizong, o mais célebre da Dinastia Tang.
A associação entre Shaolin e as modernas artes marciais e também com a tradição wuxia, com o imaginário rebelde e com os mitos fundadores da Tríade, a máfia chinesa -, porém, só ocorreria no século 16, no declínio da Dinastia Ming. Nesse período, os monges, que haviam desenvolvido técnicas de ataque, em especial com bastão, foram engajados pelo governo em uma campanha antipirataria em Henan e Zhejiang, obtendo grandes vitórias.
Com a queda da Dinastia Ming, em 1644, a China passou a ser governada por uma Dinastia "estrangeira", Qing, oriunda da Manchúria. Nesse período, os monges foram associados à rebelião: simbolicamente, se aproximavam do primeiro imperador Ming, Hongwu, um noviço budista que em 1368 havia vencido outra dinastia estrangeira, Yuan (mongol). É nesse período que vai ocorrer a conexão entre Shaolin e a marcialidade atual: das cinco grandes famílias do kung-fu modernas (Shaolin, Tai-Chi-Chuan, Pa Kua Zhang, Hsing I e I Chuan), a mais célebre é atribuída aos clérigos de Henan. Shaolin sobreviveu às agruras do século 20 e, hoje, é o destino número um do chamado "turismo marcial" na China.
Para saber mais
SHAHAR, MEIR, O Mosteiro de Shaolin História, Religião e as Artes Marciais Chinesas, Editora Perspectiva, 2011, 349 p., tradução de R. W. Apolloni e R. B. de Faveri.
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