Turista fundamental - O alemão J. W. Goethe, autor de Fausto e Os Sofrimentos do Jovem Werther narra em Viagem à Itália: 1786-1788, de forma peculiar e intimista, a sua viagem por várias cidades italianas, realizada entre 1786 a 1788. O poeta, escritor e dramaturgo é considerado um dos pioneiros do que chamamos hoje de literatura de viagem| Foto: Reprodução

Por que viajar? Há viajantes de todos os tipos nos dias de hoje, pela facilidade de transportes, claro, mas igualmente porque os destinos possíveis, conhecidos, são muitos, e nem sempre foi assim.

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O paradoxo é que, como manda o clichê, o mundo hoje fica logo ali, "à distância de um clique no mouse". Até existem aqueles que preferem o conforto do sofá de casa ou da tela do computador para uma volta ao mundo particular, mas são minoria. A informação abundante – e, sobretudo, as imagens exuberantes – dos quatro cantos do mundo, para não falar de tudo mais que se encontra pelo caminho, desperta o impulso da viagem.

Além disso, o mundo dito globalizado e suas assimetrias incentivam – quando não obrigam – a migrar. A informação, mais uma vez, sobre destinos que possam garantir um futuro que a terra natal lhe recusa é o que impulsiona, muitas vezes, o migrante.

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Para o filósofo francês Michel Onfray, em seu belíssimo ensaio Teoria da Viagem (L&PM), as raízes do desejo de se largar no mundo são mais profundas: "Ninguém se torna nômade impenitente a não ser instruído, na carne, pelas horas do ventre materno, arredondado como um globo, um mapa-múndi", escreve Onfray, poética mais até do que filosoficamente.

Mas, a quem decide viajar, outra inquietação se impõe de imediato: "Todas as destinações se tornaram possíveis – questão de tempo. Nesse campo dos possíveis, como escolher um lugar? O que escolher? A que renunciar? E por que razões? Nas combinações pensáveis, qual preferir, e por quê?", reflete o pensador francês, que mais uma vez junta razão com alguma poesia para responder: "(...) cada um dispõe de uma mitologia antiga fabricada com leituras da infância, filmes, fotos, imagens escolares memorizadas a partir de um mapa-múndi, num dia melancólico ao fundo da classe", escreve. "Existe uma cartografia que corresponde a um temperamento. Resta descobri-la."

Num bonito texto sobre os dilemas da identidade no mundo atual (From Pilgrim to Tourist, "do peregrino ao turista" – sem tradução para o português), o sociólogo Zygmunt Bauman, polonês radicado na Inglaterra, fala da inevitabilidade da viagem.

Depois de lembrar que a idéia de peregrinação é, no mínimo, tão antiga quanto o Cristianismo, Bauman afirma: "Para os peregrinos de qualquer época, a verdade está em outro lugar; o verdadeiro destino está sempre a certa distância, a certo tempo de viagem daqui. Onde quer que o peregrino esteja agora, não é onde deveria estar, e não é o lugar aonde sonha ir".

Mais recentemente, porém, quando a palavra de ordem – mais do que simples necessidade – é evitar fixar-se (e até mesmo adotar uma identidade única e imutável), nada restou "remotamente parecido com o senso de propósito e aferrada determinação do peregrino". Daí a norma: "não planeje viagens muito longas – quanto mais curta, maior a chance de ser concluída"; ao que se poderia acrescentar: para logo viajar para outro lugar. Instaura-se a ditadura do turismo.

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Bauman identifica alguns tipos de viajantes que, em busca de definir-se, perambulam pelo mundo, entre eles o "andarilho" – outra tradução possível é "vagabundo" ou, para usar o neologismo já um pouco gasto, mas aqui cheio de sentido, "vagamundo", aí incluído o migrante que às vezes viaja à força, em fuga; e o próprio turista. Sempre em movimento, como o "andarilho", o turista se move com um propósito: ter novas experiências; ao contrário do "andarilho", porém, não se depara com realidades duras e difíceis (apenas com a "vida estetizada e esculpida") e, principalmente, tem uma casa para onde voltar.

Já Michel Onfray identifica dois tipos de "temperamento" no que diz respeito à necessidade humana de se pôr em movimento: de um lado, há o turista, de novo ele; mas, de outro, em absoluto contraponto, fica o "viajante".

"O turista compara, o viajante separa", define Onfray. "O primeiro permanece à porta de uma civilização, toca de leve uma cultura e se contenta em perceber sua espuma (...); o segundo procura entrar num mundo desconhecido, sem intenções prévias, como espectador desengajado (...)."

Há quem se ressinta da predominância do turista sobre o viajante – uma separação também adotada por outro, mais do que filósofo (que de fato ele foi), poeta: Émil Cioran, romeno radicado na França. Conforme lembrou o filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, em artigo recente, Cioran gostava das praias da Normandia e da Bretanha no verão. Mas se desesperava com as hordas de turistas: "Num desses momentos, ele escreve que os ‘novos bárbaros’ (os turistas) tomaram o lugar dos ‘viajantes’, pessoas que amam conhecer o mundo pra se ‘espantar’ com ele, e não torná-lo seu ‘churrasco na laje em Paris’", resumiu Pondé, impiedoso.

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