Alguns críticos chegam a falar em um novo boom. Pode parecer exagero, mas a literatura latino-americana da última década já deu mostras de que veio para ficar. Uma mostra disso são, na narativa, autores como Roberto Bolaño, César Aira, Ignácio Padilha e Alan Pauls que, sem negar a influência dos mestres do boom (liderado pela tríade Borges, Llosa e García Marques), construíram uma obra sólida e original. A poesia, no entanto, parece relegada às sombras, apesar da produção poética continuar presente em todos os países. Para começar a suprir esse vácuo, foi lançado no país a coletânea "O Rio Que Fala Antologia da Poesia Peruana" (7Letras, 225 págs., R$ 35).
Organizada pelos poetas Everardo Norões, Pedro Américo de Farias e Sônia Lessa Norões, a antologia, em versão bilingüe, pretende traçar um panorama da poesia peruana da segunda metade do século 20. O título da coletânea se inspira no Rimac (rio que fala, em língua quíchua), que corta a capital peruana. Uma profusão de vozes que pela primeira vez são reunidas em uma antologia. Nos poemas, ecos do vanguardista peruano César Vallejo (1892-1938), além de um forte erotismo e o questionamento da vida moderna. Leia a seguir a entrevista que o poeta Everardo Norões concedeu, por e-mail, ao Caderno G:
Caderno G - Como surgiu o projeto de reunir poesia de autores peruanos em uma antologia? Já existem projetos semelhantes com poetas de outros países latino-americanos?Everardo Norões- Há muito conhecíamos a poesia de César Valejo. Mas a poesia peruana, como expressão de uma cultura, só a conhecemos quando visitamos o Peru, através do poeta Hildebrando Peres, que dirigia, creio que ainda dirige, a Oficina de poesia da Universidade San Marco. Reconhecemos nos autores cuja obra passamos a conhecer uma identidade que nos fez compreender o legado do poeta César Valejo e do romancista José María Arguedas na criação literária daquele povo. Tanto admiramos que ao voltarmos para o Brasil nos vimos no compromisso de divulgá-la, principalmente no Nordeste do Brasil. Era nossa segunda experiência com a poesia latino-americana. Anteriormente havíamos feito a edição da antologia do poeta Carlos Pellicer.
A segunda metade do século 20 teve uma expansão do gênero narrativo, enquanto a poesia ficou cada vez mais restrita a pequenos círculos. Qual a sua opinião sobre esse fato? A poesia já foi mais popular?Num ensaio sobre a situação do romance, neste mesmo período, o escritor argentino Julio Cortázar afirmou que, pela primeira vez, e de forma explícita, o romance renuncia a utilizar valores poéticos como simples adornos de linguagem e nessa procura de penetrar no "coração da esfera" alguns romancistas substituem a "fórmula pelo ensalmo, a descrição pela visão, a ciência pela magia". Mesmo assim, a poesia continuará viva: ela é diálogo do autor consigo mesmo. Mas estão cada vez mais próximas, hoje em dia, a prosa e poesia. Basta observar, por exemplo, o que ocorre com a poesia francesa contemporânea.
A narrativa latinoamericana dos últimos cinquenta anos teve algumas linhas temáticas, como o realismo mágico, a crítica ao autoritarismo, etc. Quais seriam as preocupações poéticas?Creio que é chegado o momento de a poesia se debruçar sobre o próprio sentido filosófico do fazer poético. E nós, latino-americanos, temos um imenso desafio: o de realizar uma poesia de alta qualidade enfrentando uma realidade social que clama cada vez mais pelas nossas vozes. É preciso realizar a desmistificação da poesia.
Como foi feita a escolha dos poetas para a antologia? Quais poderiam ser apontados como os mais significativos na poesia contemporânea do Peru?Para as seleção dos poetas contamos com a colaboração de dois grandes poetas, professores da Universidad de San Marcos, a mais antiga universidade das Américas. Esses poetas são Hildebrando Pérez Grande e Marco Martos. Os dois também dirigem uma oficina de poesia no Departamento de Letras da San Marcos, que tem mais de trinta anos e existência e pela qual já passaram mais de quinze mil alunos. Apenas esse fato, aliás, confirma que a poesia está muito viva em outros países da América Latina. Fomos por eles introduzidos no universo da poesia peruana. Gostaríamos de ter incluído outros poetas, mas era preciso eleger. Eu, Sônia e Pedro Américo, apoiados por Hildebrando Pérez Grande e Marco Martos, conseguimos acordar em torno desses poemas.
Existe um diálogo entre a poesia latino-americana, em especial a peruana, e a produção poética brasileira?Sim. Mas eles conhecem mais a nós que nós a eles, porque há poucos anos, a embaixada do Brasil, em Lima, editou vários livros de pequeno formato de poetas brasileiros, traduzidos pelos melhores poetas do Peru. De forma articulada com a Oficina de Poesia fez aproximar dos alunos da universidade peruana a poesia de João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Joaquim Cardozo, Murilo Mendes, Da Costa e Silva e outros. Foi uma iniciativa de relevo para a representação brasileira no Peru daquele momento. Mas, no Brasil, quase ninguém conhece a poesia peruana. Essa nossa antologia tem a intenção de resgatar essa dívida cultural.
Os romancistas da nova geração (Roncagliolo, Cueto, etc) são mais urbanos que seus antecessores, parece haver uma menor preocupação em ser fiel às temáticas mais andinas. Isso está presente também na poesia?A poesia peruana tem as marcas da poesia que é feita nos centros culturais mais avançados. Esse aspecto de poesia peruana é muito bem observado por Andytias Soares de Moura, na apresentação que fez da antologia. Contudo, os poetas peruanos têm também, em geral, um profundo conhecimento da realidade de seu país, cuja cultura secular é de uma riqueza surpreendente. Na literatura, especialmente na poesia, o exemplo mais marcante dessa possibilidade de integrar elementos de culturas diferentes numa mesma linguagem é César Vallejo. Ele marcou profundamente a lírica espanhola nos anos 30 e é, ainda hoje, referência maior da poesia peruana.
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