| Foto: Sossella

Poucos documentaristas têm uma proximidade tão grande com o objeto a ser retratado como o inglês Don Letts. Responsável por trabalhos como "Westway to the world", sobre a história do grupo The Clash, e "The punk rock movie", que retrata a cena britânica do gênero, ele deixou sua marca na história não só pelos filmes fundamentais, mas também por ter contribuído ativamente para a criação de novos rumos dentro dela. Foi Letts um dos DJs que causaram uma revolução apresentando a música jamaicana aos punks brancos ingleses.

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Não fossem as discotecagens desse filho de imigrantes jamaicanos, hoje com 51 anos, no primeiro clube punk de Londres, o Roxy, possivelmente não existiriam algumas das melhores músicas de Clash, Elvis Costello, Specials, Public Image Ltd. e de muitos outros nomes de peso. Não existiria, também, o Big Audio Dynamite, grupo que manteve com o ex-Clash Mick Jones entre 1983 e 1989, e com o qual mesclou ritmos, experimentou os primeiros samplers, veio ao Brasil e até fez sucesso.

Leia abaixo trechos da entrevista concedida ao G1 em Barcelona, onde Letts participava do festival "In-Edit", que dedicou uma retrospectiva à sua obra, que inclui o mais recente "Tales of Dr. Funkenstein", sobre a obra do papa do funk psicodélico George Clinton, "Rock It to Rio", que relata a turnê sul-americana do Franz Ferdinand em 2006, e "Soul Britannia", radiografia da black music inglesa. Confira aqui a íntegra do papo com o documentarista: G1 – Quase todos os seus filmes são sobre bandas de décadas passadas. Você prefere olhar para trás?Don Letts – Não, não. Quando fiz meus primeiros filmes, "Punk Rock" e os clipes do Clash, era "agora", era o presente. Depois me tornei Don Letts, o fazedor de filmes. E o Clash e os Sex Pistols já haviam acabado, então busquei bandas contemporâneas às quais poderia dar meu coração e minha alma. Foi muito difícil. Quer dizer, quando comecei na música, se tratava de uma coisa anti-establishment. Agora as bandas querem fazer parte do establishment. Eu gosto de trabalhar com artistas que tenham outros objetivos além de tomar o seu dinheiro. É por isso que, na maioria de meus filmes, falo de gente de outros tempos.

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G1 – Mas você fez o filme com o Franz Ferdinand, um grupo que está bem à vontade no establishment…Letts – Te digo exatamente o que gosto neles. Muitas coisas que precisam ser ditas hoje são as mesmas que precisavam ser ditas tempos atrás. Mas você não pode chegar agora e ser o Joe Strummer novamente. Não pode ser o [Bob] Dylan do começo. As coisas ainda precisam ser ditas, mas de uma forma diferente. E o que gosto no Franz Ferdinand é que seu comentário social desemboca em boa música pop. Hoje muita gente esquece que a música pop tem esse potencial. Lá nos anos 60 havia muitas canções pop com grande conteúdo. "Big yellow taxi", de Joni Mitchell, por exemplo, contém comentário social. É interessante que bandas como o Franz Ferdinand sejam inteligentes o suficiente para usar a mídia pop para abordar questões sociais. E são uma grande banda ao vivo. E é difícil recusar uma passagens grátis para Brasil, Argentina e Chile [risos, se referindo a passagem da banda escocesa por esses países no ano passado].

G1- O documentário "Punk: Attitude!" cobre mais de quatro décadas de história do punk. Você não foi à loucura para comprimir em apenas uma hora e meia tanta informação?Letts – A duração de 90 minutos foi um problema. Mas eu não enlouqueci porque, com esse projeto, eu contei mais a faceta musical. Só que o punk rock nunca foi somente sobre música! Quando comecei o projeto, queria falar sobre coisas como os filmes do (diretor espanhol) Luis Buñuel, ou artistas como Marcel Duchamp, ou comediantes como Lenny Bruce. Para mim eles todos tinham o espírito punk. Mas os investidores disseram "não, não, queremos só a história musical". Então minha única frustração foi não poder colocar essa atitude em um contexto maior. Acho que atualmente o lugar menos recomendado para se encontrar a atitude punk é a música. Sejamos sinceros: se você quer estar na MTV, ou nas paradas, o quão radical você pode ser? O Marilyn Manson pode queimar freiras no palco, e na semana seguinte você compra o DVD dele. O punk britânico dos anos 70 não produziu só música. Produziu fotógrafos, designers gráficos, cineastas como eu, estilistas como Vivianne Westwood.

G1 - Como os punks britânicos de sua geração enxergavam os chamados pioneiros musicais do assunto, dos EUA?Letts – Não há como negar que Iggy Pop, MC5, Ramones e New York Dolls foram tremendamente importantes para a cena do Reino Unido. Muitas vezes, quando os músicos tentavam montar bandas, eles anunciavam nos jornais "buscamos gente interessada em Iggy Pop, MC5, Stooges, Dolls". Os mais influentes foram os Ramones. Mas o que os ingleses fizeram foi dar uma imagem para o punk – na Inglaterra não se pode separar moda da música – e também o aspecto político. Nos EUA se tratava mais só sobre música mesmo, e também os músicos eram mais velhos, tinham tipo 25 anos, enquanto na Inglaterra tinham 17, 18. Nessa fase isso é uma grande diferença de idade. Enfim, os americanos deram o pontapé inicial, mas os ingleses pegaram e fizeram algo com sua própria cara. Nos EUA eles nem gostavam da palavra "punk", enquanto os ingleses a assimilavam, dando-lhe um estilo, política e convertendo-lhe em algo inglês.

G1 – O punk foi um movimento relacionado a um senso de comunidade. Atualmente, isso pode ser bem diferente, com os artistas produzindo sozinhos em casa.Letts – A tecnologia teve um grande impacto na maneira como a música é feita. Nos velhos tempos, quatro ou cinco pessoas se juntavam em uma garagem ou outro lugar. Havia química, uma comunicação orgânica entre indivíduos. Agora temos a tecnologia, você pega seu laptop e trabalha em seu quarto. Seu computador não vai te dizer que isso é uma má idéia. A tecnologia é fantástica, mas é importante manter a parte humana no processo, um balanço entre o orgânico e o tecnológico. O lado ruim da tecnologia acessível é a mediocridade. Sempre você precisará de uma idéia boa, no final. Quando comecei, tudo era caro: a guitarra, o amplificador… então você realmente tinha que gostar do assunto, ter paixão. Quando comecei a rodar meus filmes em Super-8, cada três minutos custavam 20 libras. Então eu tinha que ter muita disciplina, eu controlava a máquina, e não ela a mim. Mas não me entenda mal, adoro tecnologia. Tenho computador, iPod. Resumindo: as máquinas são demais, as pessoas são uma porcaria [risos].

G1 – Então você tem medo de que os novos artistas percam isso, a paixão?Letts – Exatamente. Tenho 51 anos, só posso falar por mim. Naqueles tempos, quando eu era DJ, tinha que economizar dinheiro para comprar os discos ou compactos. Havia paixão, dor, sofrimento para consegui-los. Agora, faço o download e, se não gosto, deleto. Não gosto disso. E o lance do download não é muito sexy. Ver só os títulos das canções não é nada sexy. Lembro que eu pegava os vinis, olhava as capas, falava "uau, esse cara é legal". Sinto falta disso. Estamos em um clima muito estranho agora. Se misturam a criatividade com business e tecnologia. Ainda falta um tempo para que cheguemos a um equilíbrio. O Radiohead está dando suas músicas. Para uma banda grande, OK. Mas como uma banda que está começando pode fazer isso? Em teoria, o fato das pessoas baixarem músicas obrigará os artistas a fazerem mais shows. Mas teremos um monte de shows e não haverá dinheiro para pagar por todos. As bandas terão que voltar a tocar por nada, é um problema. O Don Letts não acredita no sofrimento pela arte, não é necessário. Não há nada errado em ser pago por ter boas idéias.

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G1 – E o que você documentaria além da música?Letts – Muitos diretores dizem "ah, não vou mais trabalhar com música". Eu não, eu amo música. Você tem que entender que, para a maioria das pessoas neste planeta, música não é algo que somente os garotos fazem, como pensam nos EUA. Ela está implícita em nossa cultura, é como recebemos informação, ajuda a manter viva a nossa história! É passada dos nossos avós para os nossos pais e deles para nós. Não é algo do qual estou tentando escapar. Na verdade, corro em sua direção. Ela ainda me inspira. Se você entende o papel da música na sociedade, você pode fazer o que quiser com ela. [Pausa] E você pode dançar, também!