• Carregando...
Sandro Moser aprende um pouco de dublagem na prática, com Guilherme Lopes, o homem que deu voz em português para Samuel Jackson, Chuck Norris e Laurence Fishburne (o Morpheus de “Matrix”). | Aniele Nascimento/Gazeta do Povo
Sandro Moser aprende um pouco de dublagem na prática, com Guilherme Lopes, o homem que deu voz em português para Samuel Jackson, Chuck Norris e Laurence Fishburne (o Morpheus de “Matrix”).| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

O homem entra na cozinha e surpreende a mulher, de avental, atacando o grande peru congelado sobre a mesa com um secador de cabelos.

“O que é isso?”, diz o homem.

“Não descongelou...”, responde a mulher.

O semblante do homem muda para desconfiado. “Você tirou da geladeira ontem à noite? Colocou na água fria?”.

“Sim...”

“Colocou na água fria? ”, ele insiste.

Ela então baixa o olhar em sinal de entrega. Não. Ela não colocou na água fria. Pecado mortal. É dia de ação de graças. A família do marido está chegando e o peru ainda não descongelou. “Ahhmmpppfff”.

O suspiro desesperado do ator na tela é o maior desafio da cena proposta às vozes masculinas na turma do curso de dubladores da Canja Audio Culture.

Nesse ponto, o professor Guilherme Lopes, ator e dublador com mais de 30 anos de carreira, interrompe a cena para uma lição fundamental: “O mais importante é saber respirar junto com o personagem”.

O curso divide turmas de cerca de dez aspirantes a dubladores em dois turnos, manhã e tarde, em estúdio montado num amplo sobrado no bairro São Francisco.

Depois da dica do professor, a cena do peru vira um bate-boca entre marido e mulher. Dentro do aquário de gravação, os casais de dubladores rebolam para manter o ritmo dos diálogos simultâneos.

Método

O trabalho é mais divertido que muitos outros, mas não deixa de ser pesado. Um filme de longa-metragem é geralmente cortado em pequenas cenas de mais ou menos 20 segundos. Cada cena tem que ser resolvida em cerca de um minuto e meio.

“Podem cortar palavras, adaptar o texto sem tirar o sentido”, diz o professor com a mesma voz que usou para dublar Samuel L. Jackson em “Jackie Brown”, de Quentin Tarantino.

“É assim o dia inteiro. A gente está trabalhando concentrado e ouve a voz do Chuck Norris dizendo: ‘Vamos tomar um café?’”, se diverte Lucas Sfair um dos sócios da Canja.

O acaso o colocou em contato com Lopes. “A mãe do meu sócio trabalhava em uma locadora de carros. O Guilherme veio de São Paulo e foi alugar um carro com ela, que se impressionou com o vozeirão e pegou o cartão dele”, diz. “Nós o procuramos para uma locução e só então descobrimos que ele era o narrador dos ‘Pôneis Malditos’ e de mais de mil filmes, séries e programas de tevê que a gente já tinha visto.”

Lopes e a Canja se associaram para cumprir um projeto ambicioso. O sonho do primeiro é deslocar para Curitiba o eixo do mercado de dublagem, hoje concentrado no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Em menos de dois segundos, busco imprimir na voz as qualidades másculas que se esperam de um de tira de filme B: segurança, empáfia, além da curiosidade indicada pela pontuação [da frase].

Sandro Moser, jornalista.

“Há um diferencial em Curitiba: há muitos atores de talento. Há cultura teatral e cinematográfica forte nas pessoas. Além da presença de famílias europeias e japonesas. Muitos atores têm essa inteligência inata para lidar com idiomas estranhos”, diz Lopes. Para ele, a dublagem é um “mercado em expansão, mas ainda menor do que poderia ser”.

E, em alguns casos, pode ser bem rentável. Um dublador profissional pode ganhar R$ 60 por hora. Para trabalhar, é preciso ser ator registrado na Delegacia Regional do Trabalho (DRT).

Dentro do estúdio, o dublador ouve e vê a cena uma vez para entender o contexto. Uma segunda para marcar o tempo. Na terceira, o ensaio já é gravado e a quarta tem que ser para valer, pois tempo é dinheiro.

Nessa toada, um longa de ação cheio de explosão e perseguições pode ser dublado de um dia para o outro. Um filme mais elaborado com muitos personagens e diálogos em até uma semana.

Minha vez

Eis que chega a minha hora. Entramos,eu e Lopes, no aquário e colocamos nossos fones para dublar a conversa entre o detetive de camisa florida (eu) e o legista oriental de avental branco (Lopes).

Ele começa: “Acabei de falar com a Kono”.

“Pista Nova?”, replico.

Em menos de dois segundos, busco imprimir na voz as qualidades másculas que se esperam de um de tira de filme B: segurança, empáfia, além da curiosidade indicada pela pontuação.

Dubladores brasileiros são respeitados e tudo começou com Borges

Leia a matéria completa

Os atores caminham mais um pouco até chegar a mesa do doutor, onde há um relatório.

“E então, como estamos?”, sou eu de novo. Desta vez deixando claro que, além da minha personalidade rude, sou um agente ciente do meu dever de servir e proteger. É o momento auge da minha atuação.

Lopes então me explica que havia uma substância no corpo da vítima e não sei mais o quê... Nessa hora já estou tomado de emoção por ter dado voz a um detetive barra-pesada e não consigo me concentrar no resto da cena.

Minha glória não voa alto. Apesar do texto ser tolo e curto, me perco várias vezes no tempo da dicção de meu personagem, criando o efeito “tela class” (traduções propositalmente toscas feitas pelos humoristas Hermes e Renato na MTV há alguns anos).

“É preciso que tenha horas de voo. Para ter isso dentro do cérebro. Olhando o cara, vendo o que ele está fazendo, lendo o texto e ao mesmo tempo respirando junto com o personagem”, me explica Lopes. “É isso que a gente faz no curso, tentativa e erro até começar a acertar mais que errar. Então você começa a ter prazer no trabalho.”

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]