O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire percorreu, entre 1816 e 1822, cerca de 8 mil quilômetros pelas principais províncias brasileiras do centro ao sul do país, caminho comum de diversos viajantes que, beneficiando-se da abertura concedida com a vinda de d. João VI, fizeram expedições para catalogar as "terras e as gentes" do Brasil para a expansão dos domínios europeus.
Diferentemente da primeira leva de viajantes e cronistas, que aportaram no Brasil com os portugueses, a geração de Saint-Hilaire valorizava a racionalidade. Os naturalistas da época de Saint-Hilaire eram como repórteres, que, munidos de equipamentos da ciência, relatavam a "vida como ela era"; já os cronistas como Pero Vaz de Caminha, Magalhães Gandavo e Jean de Léry, que chegaram ao Brasil dois séculos antes, podem ser comparados a poetas: sob um imaginário religioso e mágico, em muitos casos tinham uma visão da realidade que contava com elementos fantasiosos.
A geração de Saint-Hilaire foi responsável por mostrar uma visão objetiva do Brasil para as nações modernas que se formavam na Europa. O perfil geológico, botânico, a fauna e os recursos naturais foram contabilizados por esses viajantes, que dominavam vários conteúdos.
Além do estudo da natureza, os viajantes registraram a vida social daquela época. Se quisermos ter uma visão sobre a sociedade no Brasil do século 19, a melhor fonte são os relatos dos viajantes. Os ensaístas que fizeram, a partir do início do século 20, as grandes interpretações do país, serviram-se de maneira abundante das observações dos viajantes. O que estes escreveram sobre o Brasil ajudou a construir a identidade, apesar de ser um olhar de fora, do europeu falando do seu "outro".
Em janeiro de 2001, refiz o percurso de Saint-Hilaire no Paraná, por onde ele passou em 1820, quando o território integrava a Província de São Paulo. O resultado foi o livro Nas Trilhas de Saint-Hilaire, um diário de viagem em que procurei registrar lugares e pessoas. As fotografias foram feitas por Antonio Liccardo, geólogo e fotógrafo que, três anos mais tarde, fez um livro sobre o percurso do viajante francês em Minas Gerais.
Os 181 anos que separam minha passagem e a de Saint-Hilaire por algumas cidades do Paraná marcam diferenças enormes. Nesse intervalo, o Paraná foi "reinventado". No território, havia uma meia-dúzia de cidades em 1820, fazendas, escravos, garimpeiros, tropeiros e proprietários de terra.
À diferença da Província de Minas Gerais e de partes de São Paulo, o território que hoje compreende o Paraná era pouco habitado, mas já tinha algumas marcas de identidade cultural que podem ser observadas até hoje. Trata-se de uma identidade formada por elementos das culturas portuguesa, indígena e negra.
Esses traços foram transformados aos poucos. No final do século 19, o Paraná receberia uma grande leva de imigrantes europeus, trazendo novos elementos culturais ao Estado. Esse dado, no entanto, passou a ser visto como determinante da cultura paranaense. O crítico Wilson Martins, por exemplo, escreveu um ensaio chamando o Paraná de "Brasil diferente". Nele, afirmou que os elementos europeus não-portugueses foram determinantes na formação da cultura paranaense. A tese de Martins questionava autores que defendiam o papel importante do indígena, do negro e do português na formação do caráter do brasileiro.
A tese de "Brasil diferente" rondou a mente dos paranaenses e foi mote de campanhas oficiais que venderam o Paraná e Curitiba como pedaços da Europa no Brasil. Trata-se de uma identidade cultural que chegou a ser disseminada em livros didáticos, matérias jornalísticas e propagandas oficiais.
Ao percorrer as trilhas de Saint-Hilare, no entanto, descobri um "Brasil diferente" daquele mostrado tanto pelo viajante francês quanto pelo crítico literário. Ele não é mais formado por uma população predominantemente rural, com mesclas de português, índio e negro, tampouco é uma região marcada pela cultura europeia, preconizada na tese de Martins.
Exemplo: um trabalho que vem sendo realizado pelo Grupo Clóvis Moura "descobriu", recentemente, 87 quilombos no Estado, que, em sua formação, conta com 24% de afrodescendentes. Na região por onde Saint-Hilaire passou os Campos Gerais, que envolvem cidades como Ponta Grossa, Tibagi, Reserva, Castro e Sengés , a presença negra chega a 40% da população.
Infelizmente, vêm sendo pouco valorizadas as culturas do negro, do índio e até mesmo do português na formação do Paraná, ocultadas em nome de uma suposta formação europeia, o que, na verdade, revela um certo complexo de inferioridade do Estado e da cidade de Curitiba, até hoje vendida nos guias turísticos pelas suas características europeias. Ações que buscam corrigir esse equívoco devem ser aplaudidas. E a leitura de Saint-Hilaire é um bom começo para mostrar que o Paraná não é um Brasil tão diferente assim.
* Marcelo Lima é jornalista e professor. É autor de Nas Trilhas de Saint-Hilaire (2001).
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