O dramaturgo curitibano Marcelo Bourscheid trouxe Shakespeare de volta à vida para responder certas questões que ainda pairam no ar 400 anos após sua morte, no dia 23 de abril de 1616.
Infância, névoa esparsa. Bruma. Imprecisão. Algo que gostaria de lançar às fímbrias do olvido. Mas como sói acontecer aos artistas, esses seres moldados pelos transbordares de suas faltas, foi essa infância infausta que moldou minha têmpera. Se eu pudesse, se minha índole permitisse, eu forjaria para esta entrevista uma feliz infância imaginária, afeto materno, pai amoroso, jocoso brincar tingido em tons sépias. Mas não foi isso o que ocorreu. Prefiro falar sobre outro tema...
A partir das garatujas infantis que preenchiam as tardes tediosas da Stratford-upon-Avon da infância. A escrita foi um modo de tornar célere o tempo, de fazer com que a infância terminasse logo. Foi aí que a escrita surgiu. Mas não me considero um escritor. Sou, sobretudo, um homem de teatro, um poeta da cena. A minha escrita é uma escrita cênica, feita a partir da efemeridade do fenômeno teatral. Se existe uma voz no que escrevo, essa voz não é minha, mas é legião: minhas leituras, meus amores, os atores com quem trabalho, as vozes da plateia, os errantes ébrios que me convidam para noitadas depois das sessões no Globe.
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Leia a matéria completaSomos feitos da mesma matéria que os sonhos. A principal fonte das minhas histórias são os fantasmas que me acometem no sono, ocaso de cada jornada, quando não mais somos e encetamos uma inaudita forma de ser. Talvez por isso minhas peças sejam tão noturnas, soturnas, repletas de seres líquidos como os fantasmas dos sonhos. Os clássicos são outra fonte. Plutarco, Sêneca, Plauto, Eurípides: às vezes penso que tudo que fiz foi achar uma forma contemporânea de expressar as vozes desses mestres. Felizmente, vivo em um tempo em que a angústia da influência ainda não foi inventada, e posso me relacionar com eles de forma livre e pacífica.
Plauto é o maior de todos. A sua maestria no uso dos recursos metateatrais (com o perdão do anacronismo de usar um termo que ainda não foi inventado) ensinou-me muito sobre a escrita para teatro. O teatro dentro do teatro em Hamlet surgiu das minhas leituras desse mestre. Os gregos e os latinos todos. Também devo algo a Marlowe e Ben Jonson, mas prefiro não falar sobre isso.
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Leia a matéria completaHouve um tempo em que a minha preocupação maior foi o dinheiro. Depois preocupei-me com o amor. Com o fluir do tempo, as questões dos meus contemporâneos passaram a ocupar minha insônia e minha pena. Passei a me ocupar do poder. Ó poder, milhões de olhos falsos em ti se fixam! Mas então, desiludi-me da política, pois vi os homens de meu tempo transformados em patos dóceis, almas de pato com feitio de gente, como escrevi no Coriolano!. Então, obra do desgosto ou da idade, afastei-me dos assuntos dessa época. Agora, quando o tempo já esculpe suas marcas em minha tez, quando meus parcos cabelos se assemelham à neve que fustiga a vidraça desta casa erma em que habitam meus derradeiros dias, minha única preocupação é a morte. Medonha morte, como tua pintura é feia e repulsiva!
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Leia a matéria completaUma mulher inconstante. Inconstância, teu nome é mulher. Fonte que sorveu os melhores dias de minha juventude, cuja partida deixou um hiato, um fosso, cratera no solo arenoso que se tornou o meu viver sem esta moça. Por ela os sonetos, as mulheres engenhosas, o suicídio de Ofélia, a morte de Desdêmona, os ardis de Lady Macbeth, a astúcia de Rosalinda. Quando a morte, a indesejada das gentes vier me visitar, será o nome dela que hei de sussurrar ao oblívio. Não posso dizer seu nome, pois se trata de uma mulher casada, que preferiu a insipidez de uma vida burguesa às inconstâncias do meu destino de poeta. Mas não a culpo, ela não suspeita que eu me tornarei o centro do cânone ocidental.
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Leia a matéria completaÀs vezes penso que é a morte, foz onde desemboca este rio caudaloso do tempo, senhora incauta que torna o caminho humano um projeto fadado ao fracasso. Outras vezes penso que é Marlowe, rival cujo fim precoce deixou em mim a eterna dúvida de saber se sou um gênio ou apenas um sobrevivente.
Ser ou não ser... Se existi ou não, hoje essa me parece uma questão de somenos importância. O que importa é que experimentei a aventura de amar, esse comprar escárnio à custa de gemidos. É à dama morena, esse amor proibido de voz roufenha, índole inconstante e sotaque agreste, que justificarei a minha existência, não a engomados senhores de Oxford. Não importa se existi. O que dá concretude a isso que sou ou não sou é o amor. O resto é silêncio.
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