Desde 1980, os Salões de Cerâmica realizados pelo Museu Alfredo Andersen vêm apresentando as diversas possibilidades técnicas e poéticas dessa técnica tão complexa quanto antiga. Ampliado para abranger todo o território nacional em 1998, a quarta edição do Salão Nacional de Cerâmica está em exposição na Casa Andrade Muricy até o final de abril, levando ao público um belo conjunto de trabalhos que exploram ao máximo as possibilidades da argila.
Alvo de algumas críticas no meio artístico, a cerâmica prova, nesta exposição, toda a sua potencialidade de criação artística também no registro contemporâneo. A sua proximidade do design utilitário e do artesanato tradicional é tomada, às vezes, como um empecilho para a criação artística, em que a autonomia poética e a inovação criativa são valorizadas; para alguns, a cerâmica acaba sendo mais técnica do que criação. Preconceitos que também o autor deste texto partilhava, destinados a desaparecer, no entanto, diante do excelente conjunto de trabalhos que podem ser vistos na exposição, que por si mesma justifica a própria existência do Salão Nacional de Cerâmica. Em uma época em que as fronteiras entre as diferentes técnicas e modalidades artísticas tendem à dissolução, o critério obrigatório do Salão a necessidade de que as obras inscritas sejam realizadas na humilde e ancestral argila queimada pode parecer passadista ou ultrapassado. Mas o que as obras demonstram é que, através da cerâmica, muitos artistas ainda são capazes de realizar obras de arte contemporânea de grande força poética.
Essa força poética se realiza de forma especial através de obras que exploram diferentes maneiras de transfigurar a matéria da argila, expandindo os limites da técnica para além dos seus usos tradicionais e dialogando com outras modalidades artísticas. Na Ceia de Eduardo Custódio, por exemplo, uma escala de cores é aplicada a um conjunto de peixes dispostos em círculo: através da qualidade berrante das cores, os peixes de cerâmica parecem se desmaterializar, tornando-se pura cor e luminosidade, e efetuando assim um diálogo com a pintura. No Objeto Delicado de Regina Costacurta, o diálogo se realiza com o desenho, que cria uma dimensão lúdica e imaginativa no objeto de cerâmica que remete a uma corriqueira pia.
Nas almofadas criadas por Eduardo Luiz de Freitas, as possibilidades de transfiguração do material se concretizam de maneira inquietante: as almofadas pregadas sobre a parede apresentam todas as características da maciez e da textura do tecido, mas sua aparência contradiz o material, duríssimo. Nos Assentos para Sólidos Moles, almofadas falsamente macias, feitas de cerâmica, servem de apoio confortável para sólidos geométricos, falsamente duros, feitos de silicone macio: nesta obra, como nos sonhos, os materiais contradizem a percepção imediata, em um trabalho que fascina pela simplicidade associada à perfeita execução.
Os salões de arte são também considerados por muitos como um formato ultrapassado. No entanto, este quarto Salão Nacional de Cerâmica cumpre plenamente um dos principais objetivos deste gênero de exposição, que é o de apresentar ao público artistas ainda pouco conhecidos, além de outros já consagrados além, é claro, de proporcionar a saudável discussão sobre as dimensões contemporâneas da arte. Entretanto, a exposição, que se encerra no final do mês, traz consigo uma nota preocupante: a Casa Andrade Muricy será fechada para uma urgente e necessária reforma, para a qual não há nenhuma previsão de início − e muito menos de conclusão. Resta torcer, e se necessário lutar, para que os governantes não deixem desaparecer, no limbo da burocracia estatal, aquele que já foi o melhor espaço expositivo da cidade, e que vem abrigando algumas das mais marcantes exposições já realizadas por aqui. Como se vê nesta mostra, é no poder de transfiguração da arte que residem algumas das suas maiores potencialidades: é neste poder que reside o papel transformador da arte, em que ela se une à educação e à cultura.