• Carregando...
Peter Burke passeia por aspectos do choque entre culturas na coletânea de textos O Historiador como Colunista | Ana Ottoni/Folha Imagem
Peter Burke passeia por aspectos do choque entre culturas na coletânea de textos O Historiador como Colunista| Foto: Ana Ottoni/Folha Imagem

Entrevista com Peter Burke, historiador.

Maria Lúcia Palhares-Burke, livre-docente em Educação pela Universidade de São Paulo.

A vanguarda dos estudos da tradução cultural é ocupada, hoje, por um casal que conhece de sobra os desafios do diálogo entre culturas. Afinal, ele é inglês e historiador; ela, brasileira e livre-docente em Educação pela Universidade de São Paulo; e ambos, além de professores da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, têm ajudado a disseminar o conceito entre historiadores, antropólogos, sociólogos e tradutores ao redor do mundo. Além disso, Peter Burke e Maria Lúcia Palhares-Burke são, há vários anos, os principais divulgadores no exterior da obra de Gilberto Freyre – um pensador da cultura nativa não menos do que essencial ao se falar de marcas características do brasileiro e da tentativa de interpretá-las, aqui e lá fora.

Nesta entrevista, em que responderam por e-mail a um mesmo conjunto de perguntas (mas individualmente), Peter e Maria Lúcia refletem sobre Freyre, estereótipos nacionais, valores universais e, claro, a procedência ou não de termos como "brasilidade" e "inglesidade" – valendo-se, aqui, não apenas de seu conhecimento teórico, mas da própria experiência proporcionada pelo casamento intercultural que compartilham.

Nas primeiras páginas do livro Repensando os Trópicos: um Retrato Intelectual de Gilberto Freyre, vocês fazem uma curiosa observação: que o leitor não estranhe, num livro escrito a quatro mãos por uma brasileira e um inglês, certo "contraste entre um estilo latino, mais prolixo; e um estilo britânico, mais conciso". Entendendo a língua como parte do que chamamos, de forma mais am­­pla, de cultura, é possível dizer que ela (a língua, neste caso a língua materna) é um dos últimos elementos realmente indicadores de uma identidade?

Peter Burke – Sim , penso que a língua, hoje e em particular nos últimos 200 anos, mais ou menos, é uma das principais marcas de identidade. Foi por isso que o general Franco (ditador espanhol no poder entre 1939 e sua morte, em 1975), por exemplo, proibiu o uso do catalão em público, com o que esperava transformar os catalães em espanhóis – mas não deu certo!

Maria Lúcia Palhares-Burke – Penso que se pode dizer que o aprendizado de uma língua envolve o aprendizado de uma cultura, ou, melhor dizendo, um processo de grande aproximação de uma cultura alheia à nossa. Nesse sentido, creio que dominar perfeitamente uma língua estrangeira é como se distanciar, de certo modo, de suas origens e perder um pouco sua identidade cultural. É por isso que Eça de Queiroz aconselhava a se falar "orgulhosamente mal" uma língua estrangeira, pois um novo idioma perfeitamente assimilado representa o desaparecimento da "individualidade nativa", já que traz consigo, como diz, "modos alheios de pensar, modos alheios de sentir". Tratando, em grande parte de sua produção recente, de um clássico da interpretação do Brasil, Gilberto Freyre, vocês observam o quanto o mundo ainda nos vê segundo um velho estereótipo sobre os brasileiros. É possível fugir de estereótipos na tradução de outras culturas?

Peter – Acho que é impossível es­­capar dos estereótipos, não apenas ao se traduzir outras culturas, mas mesmo quando se observa e interpreta a própria (outras classes sociais e gerações, o sexo oposto). Mas podemos ao menos tentar evitar estereótipos depreciativos ou agressivos.

Maria Lúcia – Na verdade, um estereótipo pode ser o ponto de partida de uma revisão, de correções. Gilberto Freyre, por exemplo, introduz seu belo estudo so­­bre os ingleses no Brasil (Ingleses no Brasil, 1948) dizendo que seu livro fazia parte de um esforço de corrigir os estereótipos sobre os ingleses que vigoravam no país. Defendendo-os contra os que os acusavam de ser irreparavelmente hipócritas, etnocêntricos, insulares e gananciosos, Freyre argumentava que os que assim os qualificam dão a público uma visão distorcida dos ingleses e só veem "meias-verdades". Existe, afinal, a tal brasilidade – e Freyre é um dos que tentaram defini-la – ou, para tomar outro exemplo aqui obrigatório, algo a que se possa definir, concretamente, como englishness ("inglesidade")? O que são, nos dois casos?

Maria Lúcia – Acredito que exista, num nível superficial, essa tal de brasilidade, assim como "inglesidade", "germanidade" etc. – e que essa noção pode ser compartilhada não só por estrangeiros, mas também pelos próprios nativos. Já na primeira metade do século 19 o influente "Padre Carapuceiro" (Miguel do Sacramento Lopes Ga­­ma) escrevia que, enquanto a peculiaridade dos ingleses era serem graves e taciturnos, os franceses alegres e os italianos afeminados, os brasileiros se distinguiam pelo "gosto de macaquear o estrangeiro". Mas há muito de estereótipo nessas descrições. Além disso, a identidade de um povo é múltipla, já que os seres humanos que o compõem se filiam a vários grupos ou coletividades – religiosas, políticas, profissionais, esportivas, musicais, de classe, de gênero etc. Há, pois, identidades comuns que podem ligar pessoas que vivem em latitudes bem diferentes.

Peter – Tomo "brasilidade" e "inglesidade" como descrições de comportamentos comuns (ainda que não universais) nos dois países. Como inglês, vejo os brasileiros, de maneira geral (e em relação aos ingleses), como sociáveis, extrovertidos e mesmo um pouco dramáticos. A proximidade geográfica entre agrupamentos humanos é ga­­rantia de que possam, digamos, se entender melhor do que indivíduos e povos em lugares distantes uns dos outros?

Peter – Penso que aquilo a que poderíamos chamar de "proximidade cultural" é mais importante do que a proximidade geográfica para entender outras culturas. Para um inglês, é mais fácil entender os norte-americanos do que os franceses! Não se trata apenas de uma questão linguística: acho mais fácil entender os noruegueses do que os franceses.

Maria Lúcia – Penso que a relação do Brasil com os outros países latino-americanos é um exemplo de que a proximidade não oferece garantia nenhuma de entendimento e nem mesmo de interesse por esse entendimento. Por muito tempo estávamos mais voltados para o mundo distante europeu ou norte-americano, e tudo o que nos deveria unir aos outros latino-americanos (as origens ibéricas, por exemplo) parecia nada pesar. Concordo, no entanto, com o Peter sobre a maior importância da proximidade cultural do que geográfica para o entendimento de outros povos e indivíduos. Critica-se muito, hoje, o multiculturalismo como ideologia – o que permitiria corroborar práticas tidas como violações do que entendemos por direitos humanos – enquanto, por outro lado, fala-se também numa suposta assimetria em favor dos valores preconizados pelo Ocidente, um preconceito, digamos, contra o que não se alinha ao modo de vida ocidental. O que, afinal, nos faz uma só espécie – para além, claro, de parâmetros biológicos? Existiriam os tais "valores universais" da humanidade?

Maria Lúcia – Essa pergunta me faz lembrar das considerações de Amartya Sen (filósofo e economista laureado com o Prêmio Nobel em 1998) sobre o que ele chama de "monoculturalismo plural", ou multiculturalismo mal-sucedido. Nesse caso, culturas diversas passariam umas ao lado das outras "como navios no meio da noite", sem que houvesse encontros culturais e o enriquecimento que acarretam.

Peter – Não acho que, por conta de diferenças culturais, ou até individuais, não possam existir valores humanos comuns. O problema é como identificar esses valores (em vez de assumir que os valores da minha cultura são os verdadeiros valores humanos e os de outras culturas, apenas deturpações!). Como as principais características de uma cultura são mais visíveis de fora, um marciano ou um chimpanzé estaria mais apto a responder sua pergunta!

Maria Lúcia – A humanidade que todos compartilhamos é um fato inegável e deveria ser a base para que valores como o da solidariedade universal se impusesse como inquestionável, mas a questão dos "valores universais" é algo muito mais complexo e, no limite, irrespondível. Pois, como lembrou o Peter, sendo todos nós parte interessada na questão, sem o auxilio de um "marciano", falta-nos a distância necessária para sermos

Veja também
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]